Tragédia depois de tragédia
Em seu livro "Diante da Dor dos Outros", Susan Sontag escreve: "Ser espectador de calamidades que ocorrem em outros países é uma experiência moderna levada à quinta-essência". Em Bangladesh, parece que somos espectadores e colaboradores de nossas próprias calamidades.
A intervalos de poucos meses, testemunhamos uma grande tragédia sabendo que, assim que a poeira dessa coisa terrível assentar, é só questão de tempo para outra virar manchete nas primeiras páginas de nossos jornais.
Tomemos agosto como exemplo. Houve a comemoração do Eid al-Fitr, que marca o fim do mês de jejum do Ramadã. Milhares de migrantes urbanos deixaram seu cotidiano precário e as promessas de uma vida melhor na capital do país, Dacca, e foram rever as famílias em seus vilarejos de origem no interior.
Para ir a esses vilarejos distantes, eles embarcaram em balsas para cruzar os grandes rios do país. Após poucos dias de visita, pegaram as mesmas embarcações para voltar a Dacca.
Uma delas, a MV Pinak-6, aguardava passageiros no porto em Mawa no distrito de Munshiganj, cerca de 30 quilômetros ao sul de Dacca. Por volta das 14h, teve início a viagem de duas horas pelo rio Padma.
Como as balsas de passageiros geralmente são precárias e os bengaleses ricos preferem ficar na cidade, aproveitando o tráfego menos congestionado, ninguém registrou o nome e o número de pessoas que embarcaram.
Os migrantes se apinharam nessa balsa específica, pois ninguém sabia quando a próxima chegaria e havia pressa para voltar a seus empregos.
Então se deu a tragédia: a balsa emborcou. Provavelmente centenas de pessoas morreram afogadas em poucos minutos. A Pinak-6 tinha licença para transportar 85 passageiros, mas ao que consta tinha mais de 200.
Além disso, sua licença para operar estava vencida. A viagem foi feita em maré alta e sob um alerta meteorológico de risco. Dez minutos antes da chegada prevista em Dacca, com a margem já visível, a balsa adernou e afundou rapidamente no leito do rio.
Apenas poucas dezenas de pessoas conseguiram nadar até terra firme ou foram resgatadas pelo pessoal local. Houve 110 sobreviventes na tragédia, mas muitos passageiros desapareceram nas águas sem deixar pistas.
Desastres com balsas são frequentes em Bangladesh, e o mais recente deles foi em maio deste ano. Com o passar do tempo, as histórias se embaralham e tornam-se banais.
Barcos com excesso de passageiros. Duzentas pessoas a bordo. Mulheres e crianças.
Pessoas esperando no ancoradouro notícias de seus entes queridos. Uma busca é iniciada e depois é interrompida pelas autoridades.
Os bengaleses certamente gostam de seus rios. O fato, porém, é que os leitos dos rios estão forrados de cadáveres que afundaram diante da indiferença coletiva.
E balsas não são as únicas formas de morrer em deslocamentos em Bangladesh. A Organização Mundial de Saúde calcula que pelo menos 17 mil pessoas morrem por ano nas estradas do país.
Uma delas, a rodovia Dacca-Sylhet, é considerada a mais perigosa do mundo depois que um projeto financiado pelo Banco Mundial para melhorá-la priorizou o aumento da velocidade em detrimento da segurança.
Agora que ela está recapeada, carros e caminhões disparam muito acima do limite de velocidade, aumentando o número de mortes em acidentes.
Muitos mortos não são motoristas, e sim quem não tem dinheiro para usar qualquer meio de transporte e é atropelado por veículos enquanto caminha no acostamento das estradas.
Nosso país tem descaso pelo desastre. Assumimos tranquilamente que, a cada ano, um certo número de pessoas morrerá por motivos totalmente evitáveis, seja em estradas que poderiam ser mais seguras ou em balsas lotadas que afundam.
Em algum momento, alguém ou um grupo de pessoas decidiu que o custo para modernizar, manter e regular nossa infraestrutura de transporte é maior que o custo de vidas humanas que serão perdidas se tudo continuar como está.
O que está em jogo aqui não é apenas a perda de vidas individuais, mas a própria base de nosso contrato social.
Estamos dizendo que não vale a pena gastar dinheiro com certas pessoas, pois há outras que sempre terão meios para evitar desastres, já que se deslocam pelo país em carros enormes e resistentes como tanques de guerra, em helicópteros privados ou em caros voos internos.
Quando a Pinak-6 afundou, lemos editoriais indignados e postagens revoltadas no Facebook. Porém, é mais provável que esse desastre seja esquecido como os anteriores. Nenhum ministro será demitido, nenhum controle entrará em vigor, nenhum processo será movido.
E ficaremos um pouco mais habituados com nossos desastres, dizendo: "Bem, poderia ter sido pior, como, por exemplo, um ciclone". Os mortos poderiam ser milhares, em vez de centenas. E assim vamos em frente, com nosso contrato social cada vez mais mesquinho e frágil.
Quando vemos outra pessoa sofrer, uma imagem que visa despertar empatia, também estamos reconhecendo que aquela pessoa não é nós.
Quanto maior a tragédia, mais nos sentimos distanciados dela, pois jamais estaríamos naquela balsa ou na fábrica de roupas que ruiu ou no acostamento da estrada invadido pelo carro.
Segundo a teórica de estética Elaine Scarry em "The Body in Pain" [O corpo com dor], quanto maior a dor alheia, maior é o nosso poder. Resta saber o que fazer com esse poder.
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