quinta-feira, 11 de setembro de 2014

O amor entre pais e filhos

Assisti a "Rei Lear" no Teatro Eva Herz, em São Paulo. Sabia que Geraldo Carneiro tinha transformado o drama de Shakespeare num monólogo; mas não é bem isso: é uma peça, em que um único ator, Juca de Oliveira, brilhantemente, encarna Lear e todos seus interlocutores. Acho que os ingressos estão esgotados, mas vale a pena tentar (até 12 de outubro).
Enfim, escutando esse novo "Rei Lear", algo mudou no meu entendimento da peça, a ponto que, uma vez em casa, quis verificar se o que eu tinha ouvido estava mesmo no texto de Shakespeare. E claro que estava. Explico.
Qual era, até agora, minha versão simplificada de "Rei Lear"? Lear, cansado de governar, quer dividir seu reino entre as três filhas. Na hora de fazer essa extraordinária partilha em vida, ele quer que as filhas lhe cantem uma seresta, declarando seu amor (que ele espera ser grande). Goneril e Regan se derretem em declarações apaixonadas. Cordélia, a caçula, não consegue se expressar ou não sabe o que dizer e acaba suscitando a ira do pai, que a deserda. Mais tarde, depois de ter recebido a herança, Goneril e Regan renegarão o pai. Enquanto Cordélia, deserdada, cuidará dele.
Na primeira cena do primeiro ato, Lear sempre me parecia ser mais bobo do que seu bobo: quem muito gosta de ser amado se torna uma vítima fácil da bajulação e acaba confundindo amor verdadeiro e amor fingido. Em contraponto, o problema de Cordélia parecia ser a timidez, a falta de oratória e uma sinceridade obstinada, digna de melhores causas.
Escutando a tradução (bonita e exata) de Geraldo Carneiro, dei-me conta de que, tudo bem, Cordélia pode ser pouco hábil, mas, aquém ou além disso, ela responde ao pai com precisão, declarando que ela o ama como ela deve, ou seja, que o amor dela corresponde ao que se espera de uma filha.
"I love your majesty. According to my bond; nor more nor less": amo vossa majestade de acordo com o meu laço (de filha); nem mais nem menos.
Para Cordélia, aparentemente, o sentimento que é "devido" a um pai é maior e mais importante do que qualquer amor proclamado e exibido. O problema é que Lear parece pensar e sentir diferente e, por consequência, ele espera "mais".
Shakespeare vive e escreve na época em que os sentimentos se tornam o fundamento mais legítimo da ação. É o que acontece com Romeu e Julieta: os dois se amam, e esse sentimento nos parece mais justo do que o antigo rancor entre as famílias. Irresistivelmente, a gente torce pelos amantes, enquanto Montecchios e Capuletos nos parecem restos de um passado que não entende a importância do amor.
O Rei Lear é tão moderno quanto Romeu, Julieta e seus espectadores: o que vale para Lear é o sentimento –para ele, o sentimento (exatamente como para nós modernos) é a maior garantia do laço. Ou seja, se elas me amam, elas são minhas filhas; e aquela que diz que me ama por dever não me ama o suficiente para ser minha filha.
Se minha filha diz que "deve" me obedecer, honrar e amar "em retorno" porque eu a gerei, criei e amei, que amor é esse? E que filha é essa?
Uma filha que não declara seu amor além do "simples" dever não é filha. Por si só, o laço, com os deveres que ele supõe em cada um (pai e filhas ou filhos), não vale mais nada. O que vale é o sentimento.
Alguns dirão que o sentimento fortaleceu os vínculos familiares. Mas aconteceu o contrário: os vínculos, uma vez ligados ao amor e ao sentimento, tornaram-se condicionais. Se não te amo mais, o casamento acaba. Da mesma forma, por que filhos e filhas não divorciariam dos pais, e por que os pais não divorciariam de crianças que eles não amam mais ou que amam menos?
O vínculo entre pais e filhos sempre foi complicado: por exemplo, os filhos garantem uma certa continuidade da existência dos pais, mas, por isso mesmo, eles nos lembram que vamos morrer um dia. Com "Rei Lear", surge a relação moderna entre pais e filhos, em que um vínculo já muito complicado recebe a complexidade (e a volatilidade) suplementar de uma relação amorosa.
Pense nisso antes de declarar "te amo" a seu filho ou filha. Nem sempre o amor é um bom negócio.
Nota. A importância dos sentimentos transformou a educação dos filhos numa tarefa impraticável. Como é possível se impor a alguém de quem queremos, antes de mais nada, que nos ame?


Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo

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