terça-feira, 30 de setembro de 2014

Estou sonhando

Como você sabe se está acordado ou apenas sonhando que está lendo o jornal? Dizem alguns livros de filosofia que não há como saber: sua vida toda poderia ser um sonho. Mas, com um pouquinho de conhecimento de neurociência, a resposta é quase trivial.
É somente no estado acordado que a memória dura mais do que uns poucos segundos e o mundo tem continuidade minutos e horas a fio --diferentemente dos sonhos, nos quais você começa em um aeroporto, atravessa a porta e está na praia, e, no instante seguinte, escalando uma montanha. Se você permanece horas em um mesmo lugar, abre a porta e continua no mesmo prédio, e tem acesso a memórias antigas, você está acordado.
Além do mais, normalmente não temos ciência de estarmos sonhando; dos sonhos, em geral nos lembramos apenas de alguns trechos --os últimos, logo antes de acordarmos. A não ser no fenômeno chamado de "sonho lúcido", quando a consciência se intromete no sonho.
Grupos independentes de pesquisadores mostraram recentemente que o sonho lúcido é um estado misto de sono e consciência, nem lá mas nem ainda cá, no qual o cérebro consegue, ainda adormecido, acessar memórias, saber-se sonhando e até interferir na direção do que sonha.
Isso acontece de maneira espontânea quando o cérebro, em vez de acordar de todo, muda apenas parcialmente de estado e produz atividade elétrica de alta frequência, com cerca de 40 oscilações por segundo, características do estado acordado --mas sem sair do sonho.
Um grupo na Alemanha, contudo, foi além e descobriu como provocar sonhos lúcidos. O truque tem a ver com esperar os voluntários começarem a sonhar, o que pode ser verificado pelo eletroencefalograma e pela perda de tônus muscular, e então produzir à força 40 ondas por segundo na região frontal do cérebro dos voluntários adormecidos, usando um equipamento de estimulação transcraniana.
Em quase 80% das tentativas, a manobra induz sonhos lúcidos, com insight e capacidade de mudar o conteúdo do sonho --sem acordar os voluntários.
Para quem acha que não sonha (o que não é verdade; todos sonhamos, e várias vezes por noite), o brinquedo oferece uma janela para o próprio inconsciente. Mas o grupo vê utilidades mais nobres: por exemplo, oferecer a quem sofre de distúrbio de estresse pós-traumático com pesadelos frequentes uma oportunidade de interferir conscientemente em seus próprios sonhos. Parece ficção científica, mas é só ciência.

Texto de Suzana Herculano-Houzel, na Folha de São Paulo.

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