quinta-feira, 4 de setembro de 2014

A beatificação do fracasso

Ato público do PSUV (Partido Socialista Unido da Venezuela), sob o comando do presidente Nicolás Maduro: a horas tantas, o público entoa "Chávez nuestro que estás en el cielo/ en la tierra, en el mar y en nosotros/los delegados y las delegadas/ santificado sea tu nombre...".
Pois é, a parte da esquerda brasileira que se horroriza com a religiosidade de Marina Silva silencia ante o endeusamento de Hugo Chávez. Trata-se de culto à personalidade, desgraçadamente um clássico na história latino-americana.
Na Venezuela é pior. O próprio presidente Maduro já disse que Chávez lhe apareceu em um sonho, travestido de "pajarito", e lhe deu conselhos. Ou se trata de um caso clínico grave ou é pura demagogia, uma forma de apropriar-se do cadáver de um líder realmente querido por pelo menos metade da Venezuela.
Se é a segunda hipótese, não funcionou. Acaba de sair pesquisa do IVAD (Instituto Venezuelano de Análise de Dados), sempre considerado próximo do chavismo, com resultados que só orações mais fervorosas poderão eventualmente desmanchar. Ei-los:
– 77% acham que o governo vai na direção errada;
– 82,5% dizem que o país está atolado em uma crise econômica;
– 78,9% veem também uma crise política;
– 63,4% têm visão negativa da performance de Maduro;
– 68,6% têm pouca ou nenhuma confiança em que o presidente possa resolver problemas econômicos;
– 58,4% acham que Maduro deveria renunciar;
– 59,1% pensam que o governo não é democrático e está se transformando em uma ditadura;
– 57% culpam as forças governamentais pelas mortes no período de protestos de fevereiro a maio;
– 79,5% acham que há prisioneiros políticos na Venezuela;
– 50,9% votariam em candidatos de oposição para uma eventual Assembleia Constituinte; só 27,6% o fariam pelo PSUV;
– 49,8% dos pesquisados se inclinam pela oposição, ao passo que a fatia governista é de apenas 32,5%.
Repito: o IVAD não é um instituto oposicionista. Em todas as eleições, seus números são geralmente mais favoráveis ao governo.
Outro instituto, o Datanálisis, tido como o mais sério de todos, fez um levantamento sobre o desejo de emigração dos venezuelanos e descobriu que 10% da população está preparando papéis para fugir do país. No Brasil, seriam 20 milhões dispostos a partir, êxodo de tempos de guerra.
Parece claro que o socialismo do século 21 esgotou-se. Produziu, numa ponta, formidável redução da pobreza (caiu de 51,7% em 2000 para 29% em 2012, segundo dados da ONU). Na outra ponta, inflação recorde, desabastecimento idem e crescimento perto de zero.
É natural que Maduro venha falando há algum tempo num "sacudón", uma forte mexida nas políticas. Até agora, não passou de uma dança de cadeiras entre ministros. O presidente precisa escolher entre aprofundar o socialismo (modelo que não funcionou em nenhum lugar do mundo) ou adotar alguma liberalização, que os fiéis de "Chávez nuestro" repudiarão. Haja orações, pois.


Texto de Clóvis Rossi na Folha de São Paulo.

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