Testemunho sobre crimes de guerra cobra preço alto
Por MARLISE SIMONS
HAIA - Ela escolheu o anonimato de uma estação ferroviária para falar do peso insuportável de viver uma vida dupla.
Ela nunca quis que fosse assim. Quando a jovem de Belgrado se ofereceu para ser testemunha em um dos julgamentos por crimes de guerra mais sensacionais em décadas, envolvendo o ex-presidente sérvio Slobodan Milosevic, recebeu a promessa de anonimato.
Ela recebeu um nome codificado, Testemunha B-129, e seu rosto e sua voz foram modificados eletronicamente no tribunal da ONU para a antiga Iugoslávia, em Haia, onde ela depôs em 2003.
Isso até que um técnico divulgou por engano trechos com sua voz real, e o julgamento foi transmitido ao vivo na Sérvia. Depois que a testemunha voltou para casa, alguém tentou matá-la.
Hoje a Testemunha B-129 é uma das testemunhas de tribunais internacionais que vivem sob programas de proteção policial, longe de casa, com novos nomes e histórias passadas, para ocultar sua identidade.
"Para a Sérvia, sou traidora", disse a testemunha, que hoje tem 42 anos. "Mas o fato de ter colaborado com o tribunal arruinou minha vida. Quando você ganha uma identidade nova, perde tudo: seus amigos, seus bens, sua própria história."
Funcionários do tribunal em Haia e a polícia no país onde ela reside agora se negaram a comentar o caso da testemunha. Mas seu relato foi corroborado em grande parte por documentos do tribunal e cartas que ela mostrou, além de advogados que trataram do caso.
Todos os tribunais modernos de crimes de guerra dependem de testemunhas, porque raramente há indícios diretos dos responsáveis por massacres, tortura ou estupros em grande escala.
A Testemunha B-129 foi uma pessoa desse tipo. No julgamento de Milosevic, descreveu seu trabalho como assistente de Zeljko Raznatovic, um empresário sérvio envolvido em falcatruas e contra quem havia mandados de prisão em toda a Europa.
Nas guerras dos Balcãs, no início da década de 1990, Raznatovic criou uma milícia conhecida como Tigre, que ganharam notoriedade por praticar contrabando, saques e assassinatos nas vizinhas Croácia e Bósnia. Durante seu julgamento em Haia, Milosevic alegou não ter conhecimento das atividades dos Tigres.
Mas, citando detalhes do livro de registro do escritório onde trabalha, a Testemunha B-129 revelou que Raznatovic e os Tigres eram controlados e pagos pelos chefes de inteligência e segurança de Milosevic, que ordenavam seus deslocamentos.
Ela acrescentou que Raznatovic se gabava abertamente de nunca fazer prisioneiros. Ele foi indiciado em 1997, mas em 2000 foi morto a tiros no saguão de um hotel de Belgrado.
B-129 disse que em 2003, depois de assistir à transmissão de sessões do julgamento do ex-presidente, ficou indignada e teve vontade de testemunhar. "Milosevic estava mentindo e negando tudo."
Depois de voltar para casa, sua família foi ameaçada e um carro tentou atropelá-la. Funcionários do tribunal levaram a testemunha e seu marido para fora do país. "Fomos levados a uma casa cheia de mofo preto, quase sem móveis, sem cozinha ou banheiro", contou.
Em Belgrado, o casal tinha seu apartamento próprio. A testemunha dirigia um instituto de idiomas e seu marido trabalhava para uma organização humanitária. Agora, sem poderem mostrar seus diplomas, os dois tiveram que buscar trabalhos mal pagos em regime de tempo parcial, revezando-se para cuidar de seus três filhos, todos nascidos no exílio. O atraso no pagamento do aluguel já os levou para o tribunal, disse.
Slobodan Milosevic morreu na prisão em 2006, antes de seu julgamento chegar ao fim. Dois funcionários sérvios contra os quais ela testemunhou mais tarde foram absolvidos recentemente.
"Me sinto usada", ela se queixou. "Eles estão em liberdade e em casa. Estou em situação pior, mas não cometi nenhum crime."
Reprodução de reportagem do The New York Times, na Folha de São Paulo.
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