quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Os filhos que a gente (não) quer

"Seu Jairo, amanhã eu devo me atrasar para chegar. Talvez eu nem venha, o senhor me desculpe. Ontem à noite, mataram meu sobrinho, com 16 tiros, ali no Paraisópolis --uma das maiores favelas de São Paulo. Vou ao enterro, porque pude ficar pouco no velório.
Minha irmã está arrasada, seu Jairo. Foi humilhada pelos policiais que foram ver o caso. Pareciam dizer que a culpa tinha sido dela por não ter controlado o filho direito, por não ter prendido ele em casa. Ele mexia com coisa errada, sim, seu Jairo, mas tentamos de um tudo para ele ser uma pessoa do bem, honesta, trabalhadora.
A gente que é pobre de cidade grande, seu Jairo, tem de trabalhar muito, o dia inteiro, para poder sustentar os filhos e tentar dar a eles um pouco dessas coisas todas que vão aparecendo: um tênis de R$ 500, o senhor acredita que tem tênis de R$ 500? Uma roupa da moda, um jogo do computador, um celular que só falta voar.
Ninguém tinha orgulho do Vitinho fazer coisas erradas, não, e minha irmã sofria demais com ele, mas era filho, era amado e é doloroso ver ele ali caído no chão, cheio de balas, parecendo um bicho, seu Jairo.
Quem não quer ter um filho que seja honesto, trabalhador, que cuide da família? A gente não sabe onde erra com eles, seu Jairo. A gente pensa que está fazendo o melhor, a gente briga quando vê uma atitude errada deles, mas existe uma força que acaba arrastando eles para o mal, por mais que a gente reze e peça a proteção de Nossa Senhora."
As palavras e o choro tímido de Geni, minha ajudante, parecem ter-me posto anestesiado, a ponto de não conseguir reagir diante dela, de não conseguir dar-lhe um apoio sincero, daqueles que sustentam o amanhecer do dia seguinte.
Mais tarde, pensei que muitos e muitos filhos não são necessariamente aquilo que os pais sonharam, desejaram e desenharam como reflexo mais bem construído de si mesmos. Os filhos podem seguir os anseios de sua própria natureza ou os caminhos pelos quais os acontecimentos, as desgraceiras, a genética, a sociedade injusta e o diabo os levaram.
Filhos nascem com down, filhos adquirem vícios, filhos apanham na escola porque não são os fortões, filhos machucam os outros, filhos sofrem por preconceitos contra sua sexualidade, filhos fazem tatuagens horríveis, filhos se tornam ateus.
Minha mãe não queria ter um filho cadeirante, Geni, e fez da noite dia para que eu andasse e fosse uma criança como outra qualquer. Mas chegou o momento em que eu quis assumir o meu destino com minhas próprias rodas.
Sim, Geni, entendo que crescer com uma inconformidade física ou intelectual é bem diferente de crescer aprontando crimes, vexames e vergonhas para os pais, mas, muitas vezes, chega o momento em que o controle absoluto que se imagina ter da cria se esvai diante do ímpeto de eles quererem rabiscar o próprio destino.
Penso que mesmo aqueles filhos que são exatamente do jeito que a gente quer podem estar amarrados diante da angústia de fazer aquilo que não querem.
O fundamental, Geni, é buscar a calma na mente por, alimentando a esperança de que os filhos seguissem seus próprios caminhos, ter doado amor, dedicação, suor, ensinamentos, alegria e fé.


Texto de Jairo Marques, na Folha de São Paulo

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