segunda-feira, 9 de junho de 2014

Querem acabar com a USP

Os defensores da implantação do ensino pago na Universidade de São Paulo podem ser acusados de tudo, menos de originalidade. No que parecia lá longe, em 1958, um certo Rudolph Atcon propunha o seguinte:
"A universidade latino-americana deve consolidar sua autonomia e adquirir um grau de independência real. O melhor sistema legal para alcançar este grau de liberdade é a transformação da universidade estatal em universidade privada. [...] A responsabilidade financeira poderia estabilizar-se eventualmente na divisão, pelo estudante e pela universidade do custo real do mesmo. Deve ser estabelecido um fundo assistencial de bolsas adicionais para compensar o desaparecimento de uma educação gratuita".
Atcon não se trata de qualquer um. Americano, escreveu um relatório que serviu de base aos famigerados acordos MEC-USAID e ao relatório Meira Mattos da década de 60. Os documentos orientaram as tentativas da ditadura militar de modelar a universidade brasileira ao gosto das elites. Não por acaso, suas recomendações vinham escoltadas por medidas como extinção de centros acadêmicos, DCEs, UNE, decreto 477 e tudo o mais que desviasse os estudantes de sua "missão de aprender".
Graças à mobilização estudantil e acadêmica, as ideias de Atcon vingaram apenas em parte. A resistência ao ensino pago serviu de bandeira para batalhas memoráveis, embora insuficientes para impedir a proliferação desenfreada de faculdades privadas, conhecidas como fábricas de diplomas.
Mas sempre que alguma universidade pública apresenta problemas no balanço, o fantasma de Atcon/MEC-USAID emerge repaginado. A capa da assombração varia, mas sempre dourada com uma pílula social: a gratuidade do ensino favorece os ricos. Aí surgem pesquisas as mais variadas, com metodologias ao gosto da tese que se quer provar. A ombudsman desta Folha, a propósito, chamou atenção para isso em sua última coluna de domingo.
Qualquer um interessado no progresso social sabe que, num país como Brasil, o grande desafio é expandir o ensino público. Cobrar mensalidades nos últimos bastiões de educação gratuita (qual o critério socialmente justo?) é o primeiro passo para vedar o acesso dos mais humildes a centros de excelência. Gente pobre que, aliás, já paga para ter o direito de estudar a cada centavo de imposto que deixa no caixa do mercado. Por que não melhorar o ensino básico gratuito de forma a qualificar os que têm menos dinheiro a concorrer a uma vaga numa universidade de ponta em vez de cobrar mensalidade de quem estuda na USP?
A pergunta incomoda, claro. Ainda mais quando se aproxima a lente das raízes da crise financeira da universidade paulista. As suspeitas são várias. Vão desde a "contabilidade criativa" na hora de calcular salários do topo da burocracia e ausência de fiscalização independente até previsões mal explicadas em peças orçamentárias. Exemplo: gastos de cerca de R$ 800 milhões no orçamento de 2013 reprovados, sem sucesso, por representantes de professores, alunos e funcionários. A denúncia está lá, em artigo publicado na página 3 desta Folha no dia 6 de junho. Permanece incontestada pelos cardeais da USP.
A impressão, no final de tudo, é de que a maior universidade do país virou nas últimas décadas um centro de negócios escusos. Ao mesmo tempo em que despenca nos rankings internacionais, dá-se ao luxo de pagar salários faraônicos a reitores, abrir escritórios em Cingapura (!) e manter um navio oceanográfico de R$ 23 milhões parado em Santos por falta de condições de navegar.
Enquanto isso, milhares de alunos perambulam como zumbis pela cidade de São Paulo porque a decantada USP Leste foi alojada em cima de um lixão e hoje está interditada. Falta de dinheiro ou gestão irresponsável?


Texto de Ricardo Melo, publicado na Folha de São Paulo

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