Tony Blair vem sendo amplamente ridicularizado por sua tentativa de justificar a invasão do Iraque em 2003 e por ter afirmado no último fim de semana que não carrega culpa alguma pela turbulência atual.
Infelizmente, porém, muitos de seus críticos aceitaram uma parte central de seu argumento: que a sociedade iraquiana não passa de uma coleção heterogênea de religiões e etnias que aguardam há décadas ou mesmo séculos para massacrar umas às outras e mergulhar o lugar num banho de sangue.
A principal diferença entre as duas partes parece ser que Blair enxerga a intervenção ocidental como sendo a resposta, enquanto alguns de seus críticos dizem que o Iraque precisava de um ditador como Saddam Hussein para manter o país coeso.
Até agora, porém, nem um lado nem o outro apresentaram provas históricas de enfrentamentos comunais importantes entre as diferentes religiões, seitas, etnias ou nacionalidades do Iraque.
Antes da invasão liderada pelos EUA de 2003, o único incidente foi o saqueio violento de bairros judaicos em 1941, ainda envolto em mistério no que diz respeito a quem o planejou.
Por ordem de sucessivos governos britânicos, documentos relacionados àquele incidente criminal ainda são mantidos em segredo no Public Records Office (o serviço nacional de arquivos do Reino Unido).
Os ataques com bombas contra sinagogas em Bagdá em 1950-51 revelaram ter sido obra de sionistas, visando assustar os judeus do Iraque -uma das comunidades judaicas mais antigas do mundo-para que emigrassem a Israel, depois de terem se recusado a fazê-lo.
Até a década de 1970, quase todas as organizações políticas iraquianas eram seculares, atraindo pessoas de todas as religiões e de nenhuma. As linhas divisórias eram nitidamente políticas, baseadas principalmente em classe social e orientação política.
CRESCIMENTO DOS RELIGIOSOS
O crescimento dos partidos religiosos se deu depois de Saddam ter eliminado implacavelmente todas as entidades políticas com a exceção do partido Baath. Os locais de oração tornaram-se centros de organização e agitação política.
Contrariando mitos populares, os fundadores do partido Baath foram em sua maioria xiitas. Mas a ideologia baathista iraquiana sempre teve um viés racista contra o povo curdo e os não árabes, além de um viés classista, quando esteve no poder, que marginalizou milhões de pessoas dos setores sociais mais pobres, principalmente no sul do país.
O sul do Iraque e algumas áreas de Bagdá onde vivem principalmente migrantes xiitas vindos de áreas rurais do sul historicamente abrigam a população mais pobre.
Entre as décadas de 1940 e 1960, a maior organização iraquiana de massa foi o partido Comunista iraquiano, fundado em 1934 por ativistas de todas as origens religiosas e étnicas.
O PCI era o partido mais forte até mesmo no Curdistão iraquiano e continuou a ser um partido de massas até que sua liderança decidiu aderir ao regime de Saddam, em 1973, contrariando a vontade da maioria de seus filiados. Em 1978-9 Saddam lançou uma campanha brutal contra o PCI, e o partido perdeu sua razão de ser depois de entrar para o Conselho Governista Iraquiano criado após a ocupação, em 2003.
Os comentaristas no Iraque falam com frequência em guerras étnicas travadas contra os curdos iraquianos. O que eles deixam de mencionar é que nenhuma dessas guerras foi popular. Foram guerras travadas com crueldade por regimes repressores, especialmente o de Saddam.
Uma das maiores provas da tolerância que existe entre as diversas comunidades no Iraque é o fato de que Bagdá ainda tem até 1 milhão de curdos, que nunca foram alvos de violência comunitária perpetrada por árabes.
Do mesmo modo, cerca de 20% da população de Basra é sunita. Samarra, cidade de maioria sunita, abriga dois dos santuários xiitas mais sagrados. Seu clero sunita há séculos é guardião dos santuários.
Cada tribo no Iraque possui sunitas e xiitas em suas fileiras. Cada cidade maior ou menor tem um misto de comunidades.
Cada tribo no Iraque possui sunitas e xiitas em suas fileiras. Cada cidade maior ou menor tem um misto de comunidades.
Minha experiência do Iraque, e a de todos meus amigos e familiares, é de uma mistura espantosa de comunidades que convivem, não obstante regimes sucessivos que procuraram dividir para dominar.
As tensões sectárias e étnicas mais graves da história moderna do país surgiram após a ocupação liderada pelos EUA de 2003, que enfrentou oposição e resistência populares maciças.
Os EUA seguiram sua própria política de dividir para governar, promovendo organizações iraquianas baseadas na religião, etnia, nacionalidade ou seita, ao invés da política. Muitos oficiais seniores do Exército iraquiano recém-formado saíram dessas organizações e do exército de Saddam.
Essa situação foi exacerbada três anos atrás, quando grupos sectários na Síria receberam o apoio dos EUA, Turquia, Arábia Saudita e Qatar.
É esse oficialato que este mês entregou Mossul e um terço do território iraquiano aos terroristas do EIIL, reforçados por milhares de combatentes estrangeiros, membros do partido Baath de Saddam e do partido Islâmico (um ramo da Irmandade Muçulmana).
Já ficou claro, também, que os líderes do governo regional curdo ampliaram seu controle e implementaram um cessar-fogo "de facto" com os insurgentes sectários. Também vale notar que os oficiais que abandonaram Mossul e outras áreas sem disparar um tiro sequer fugiram para o Curdistão.
Ainda não se sabe se o Iraque poderá sobreviver a esta, a mais grave ameaça à sua existência. Mas aqueles que afirmam que o país só poderá ter paz se for dividido em três Estados não entendem a composição da sociedade iraquiana: as três regiões cairiam rapidamente sob o domínio de sectários e chauvinistas violentos.
Considerando como as regiões iraquianas são étnica e religiosamente mistas, particularmente em Bagdá e na parte central do país, uma fragmentação nacional em três seria uma receita para guerras permanentes nas quais as empresas petrolíferas, os fornecedores de armas e os chefes de guerra seriam os únicos ganhadores.
Texto de Sami Ramadani, para o The Guardian, reproduzido na Folha de São Paulo. Tradução de Clara Allain.
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