Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o total de pessoas deslocadas por guerra atingiu seu nível mais alto: 51 milhões, metade delas crianças. Isso ocorre 25 anos depois da queda do Muro de Berlim, saudada como o "fim da História"!
Faltando pouco para o centenário do atentado de Sarajevo, origem da Grande Guerra, tropas russas se concentram na fronteira ucraniana. Na mesma área estão forças da Otan, incluindo soldados da França e Alemanha, inimigos em 1914.
Para não pensar que a história se repete no cenário europeu, é bom lembrar que 85% dos refugiados estão no Oriente Médio e na África.
Americanos e ingleses tiveram só um êxito: destruir o que restava de relativa estabilidade na região. Ao cometer o crime da invasão do Iraque, causaram a morte de mais de 150 mil pessoas ao custo de um trilhão de dólares, sem trazer nada de durável em democracia.
Tornaram precária a sobrevivência de minorias como os cristãos e criaram condições para a introdução do único flagelo inexistente sob Saddam Hussein: um monstruoso movimento terrorista, mais assustador que Al Qaeda.
Como se não bastasse o assombroso fiasco, só não completaram a destruição da Síria por lhes faltar o apoio de uma população exausta.
O que não impede que reincidentes como Blair atribuam a reviravolta no Iraque à falta de disposição americana para derramar mais sangue na Síria! Não vai demorar muito para que o Afeganistão, corrupto e dividido, siga o mesmo caminho do Iraque.
Eu era subsecretário-geral da ONU na época da invasão do Iraque. Junto com alguns colegas, estive entre os que protestaram em público contra a flagrante violação da Carta das Nações Unidas e do direito internacional.
Era fácil prever o que hoje explode na cara dos americanos: o exemplo da potência atropelando a lei que ela mesma criara encontraria seguidores, talvez até piores.
O cinismo com que russos anexam a Crimeia e desestabilizam a Ucrânia, a sem-cerimônia com que chineses exploram águas territoriais disputadas, o renascimento do nacionalismo japonês, para só citar os grandes, indicam que passamos do mundo unipolar para o multipolar.
O monopólio do poder num só país produziu resultados desastrosos como o do Iraque. Não se pense, porém, que o mundo ficou melhor porque existem agora vários polos de poder além dos EUA.
A combinação de poder militar com nacionalismo exacerbado é que desencadeou as duas guerras mundiais, depois de ter gerado guerras incessantes nos séculos 18 e 19.
Dizem os historiadores que, de todas as formas de distribuição de poder, a mais instável e violenta é a multipolar. O mundo de que precisamos é aquele onde os conflitos e as normas sejam decididos democraticamente por todos.
Essa é a definição de multilateralismo, conceito oposto ao de multipolarismo sem limites a não ser a lei da selva e o "sacro egoísmo".
Para os sem poder militar como o Brasil e a imensa maioria dos países, a garantia dos direitos só pode vir não do multipolarismo de alguns Brics, mas da segurança coletiva e da Carta da ONU.
Texto de Rubens Ricupero, publicado na Folha de São Paulo.
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