quinta-feira, 26 de junho de 2014

Nos EUA, empresas estão lucrando com a morte de funcionários


Este ano, os funcionários do "Orange County Register" receberam um email inquietante da sede corporativa. O grupo proprietário do jornal, Freedom Communications, estava escrevendo para solicitar o consentimento dos trabalhadores para fazer um seguro de vida para eles.

Mas o beneficiário das apólices não seriam seus familiares ou o espólio do empregado segurado, e sim o plano de previdência da Freedom Communications. Repórteres e editores resistiram, inconfortáveis com a ideia de que a empresa poderia lucrar com suas mortes.

Depois de uma intensa campanha de lobby pela gerência da Freedom Communications, o plano finalmente foi posto em prática, um pouco modificado. No entanto, os funcionários do "Register" ficaram abalados.
O episódio do "Register" reflete uma prática comum da América corporativa, mas pouco conhecida: as empresas estão fazendo seguro de vida para seus empregados e recebendo os benefícios quando eles morrem.

Como o seguro de vida de propriedade da empresa oferece para os empregadores generosas isenções fiscais, o mercado é enorme; centenas de empresas têm feito apólices para milhares de empregados. Os bancos são especialmente favoráveis à prática. O JPMorgan Chase e o Wells Fargo detêm bilhões de dólares em seguros de vida em seus livros, que são contabilizados como pontos em sua capacidade de resistir a choques financeiros.

Os críticos, entretanto, dizem que é imoral as empresas lucrarem com a morte dos funcionários, enquanto os próprios empregados não se beneficiam diretamente. Em 2006, foi promulgada uma lei que procurou coibir a prática, restringindo-a aos principais funcionários da empresa, os 35% mais bem pagos, que devem dar o seu consentimento. Apesar disso, a prática continua sendo uma fonte crescente e legal de lucro das empresas, apesar da falta de transparência.

"As empresas detêm essa quantidade monstruosa de cobertura de vida", disse Michael D. Myers, advogado de Houston que entrou na justiça com ações coletivas contra várias empresas com tais apólices. As empresas e os bancos dizem que os ganhos de apólices de seguros são usados para cobrir os cuidados de saúde a longo prazo, remuneração diferida e obrigações de pensão.
"O seguro de vida é uma das formas de reforçar a saúde a longo prazo do plano de pensão e assegurar a sua capacidade de pagar os benefícios", disse o executivo-chefe da Freedom Communications, Aaron Kushner.

E como essas apólices de seguro de vida recebem generosos incentivos fiscais, são veículos de investimento ideal para as empresas que procuram reservar um dinheiro para pagar seus planos de pensão --os prêmios são livres de impostos, assim como todos os retornos de investimento sobre as apólices e os benefícios eventualmente recebidos em caso de morte. As empresas argumentam que, se tivessem que financiar tais obrigações com investimentos tributados normalmente, incorreriam em perdas e não seriam capazes de oferecer os benefícios aos empregados.

Em muitos casos, porém, as empresas podem usar os ganhos isentos de impostos para o que quiserem. "Se você quiser pegar esse dinheiro e construir uma nova agência bancária, tudo bem", disse Joseph E. Yesutis, sócio do escritório de advocacia Alston & Bird, especialista em regulação bancária. "As empresas não prometem às agências reguladoras que vão usá-lo para uma finalidade específica".

Há centenas de bilhões de dólares em vigor nas apólices, o que dá às empresas um fluxo constante de renda, com a morte de funcionários atuais ou antigos, mesmo décadas depois de se aposentarem ou deixarem a empresa.

Aon Hewitt estima que estão sendo postos em prática por ano pelo menos US$ 1 bilhão em novas apólices e que cerca de um terço das 1.000 maiores empresas do país detêm esse tipo de seguro. Analistas da indústria estimam que até 20% de todos os novos seguros de vida são feitos por empresas em nome de seus empregados.

No entanto, é impossível determinar o tamanho exato do mercado do seguro de vida empresarial. Com a exceção dos bancos, as empresas não são obrigadas a comunicar as suas participações em seguros. "Não há nenhuma informação confiável de quem está comprando seguro de vida e para que", disse Steven N. Weisbart, economista-chefe do Instituto de Informação de Seguros.

Os bancos são obrigados a comunicar as suas participações porque os reguladores querem saber quanto dinheiro eles poderiam acessar se tivessem que resgatar as apólices antes da morte do segurado empregado.

Esse número, conhecido como o "valor de resgate em dinheiro" --ou a quantidade que eles poderiam retirar imediatamente-- fornece um vislumbre do tamanho desse investimento.

As apólices do Bank of America têm um valor de resgate em dinheiro de pelo menos US$ 17,6 bilhões (em torno de R$ 42 bilhões). Se o Wells Fargo tivesse que resgatar suas apólices amanhã, recolheria pelo menos US$ 12,7 bilhões. O JPMorgan Chase receberia pelo menos US$ 5 bilhões, de acordo com documentos do Conselho Federal de Exame das Instituições Financeiras.

Como o dinheiro poderia ser obtido pelos bancos rapidamente das companhias de seguros, caso necessário, as participações de seguro de vida são consideradas capital de nível 1, uma medida básica da força de um banco. Muitos bancos têm de 10 a 25% do seu capital de nível 1 investido em seguros de vida, de acordo com o Goldstein Financial Group.

Especialistas do setor de seguros dizem que a maioria dos grandes bancos adiaram novas aquisições de seguros de vida, em parte por causa dos limites sobre quantas apólices podem ter. No entanto, o valor das apólices existentes continua a crescer, com os ganhos do capital investido ultrapassando os benefícios pagos quando os funcionários morrem.

O seguro de vida corporativo nasceu dos chamados seguros para pessoas cruciais, que protegia as empresas contra as consequências econômicas relacionadas à morte de seus altos executivos. A New York Times Co. contratou apólices de seguro de vida para alguns de seus altos funcionários.

Mas com a falta de regulação significativa em torno da prática, ela cresceu sem controle, e logo as empresas estavam fazendo seguro para muitos empregados mal pagos, como faxineiros, e recolhendo milhões de dólares em lucro quando morriam.

Uma série de ações judiciais coletivas, algumas movidas por Myers, questionaram as corporações que abusaram da prática. Várias empresas, incluindo a Wal-Mart, fizeram acordos, pagando milhões para os empregados de baixa patente que tinham sido cobertos. A Receita Federal foi à justiça contra empresas como Winn-Dixie e Camelot Music pela utilização de seguros como esquemas de evasão fiscal.

Os críticos começaram a chamar o seguro do "camponês morto", uma alusão ao romance de Nikolai Gogol "Almas Mortas", no qual um vigarista compra escravos mortos para usá-los como garantia em um negócio.

Apesar das críticas, as empresas e os bancos continuaram a usar as apólices em busca de retornos. Nos anos que antecederam a crise financeira, seguradoras de vida para bancos, incluindo Wachovia e Fifth Third Bancorp, investiram seus prêmios em um fundo hedge administrado pelo Citigroup.

À medida que o valor do fundo aumentou, os lucros foram registrados nos balanços das empresas, aumentando os lucros. Mas, quando o fundo hedge desabou, com o pânico do mercado, também caiu o valor das apólices, levando os bancos a substanciais baixas contábeis.

Esforços foram feitos regular a prática. A Lei de Proteção à Pensão de 2006 incluiu um conjunto de regras para as empresas fazerem seguro de vida de seus funcionários. "O governo fez grandes passos no sentido de limpar a prática", disse J. Todd Chambley, que dirige o setor de benefícios executivos da Aon Hewitt. Ainda assim, a noção de seguros de vida que beneficiam os balanços das empresas, em vez dos indivíduos, permanece sujeita a críticas.

Respondendo aos ataques contra o plano da Freedom Communications, Kushner se defendeu em uma carta aos funcionários. "Os seguros de vida não são macabros, nem as pessoas que o vendem ou o compram", escreveu ele. "O seguro de vida, por sua própria natureza, foi criado para beneficiar as pessoas que amamos e com quem nos preocupamos."

Reportagem de David Gelles, para o The New York Times, reproduzida no UOL. Tradutor: Deborah Weinberg

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