segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Trabalho forçado sobrevive nas plantações de algodão do Uzbequistão

Durante a maior parte do ano, Tamara Khidoyatova trata pacientes em seu trabalho como médica num hospital de Samarkand, uma pitoresca cidade na antiga Rota da Seda. Mas, por algumas semanas a cada outono, ela é obrigada a colher algodão, trabalho pelo qual recebe pouco ou nada.
Durante todo o outono, quando chega a época de colheita do algodão, o governo convoca cerca de 1 milhão de pessoas, principalmente funcionários do setor público, para trabalhar como catadores, ajudando a colher a safra para a quinta maior nação exportadora de algodão do mundo.
"Você chega para trabalhar, toda maquiada, vestindo roupas bonitas, bons sapatos", disse Khidoyatova. "E o diretor da clínica chega correndo e diz: 'Preciso de 40 pessoas no campo, o ônibus está lá fora, corram, corram!"
Essa foi uma viagem de apenas um dia. Mas a maioria das pessoas recebe algum aviso e, em seguida, parte para períodos de um mês inteiro. Uma vez nas plantações, os catadores usam pesados sacos de pano a tiracolo, inclinam-se entre as leiras e repetidamente colhem os chumaços brancos para juntar uma quota de 55 quilos de algodão cru por dia. À noite, eles dormem em camas portáteis nos ginásios das escolas das aldeias ou em barracas rudimentares nos campos.
Até poucos anos atrás, os estudantes, alguns com apenas sete anos de idade, eram chamados rotineiramente para colher algodão, e alguns jovens do segundo grau ainda o fazem. Mas, pressionados por um boicote organizado pela Campanha do Algodão, um grupo que representa as principais empresas de vestuário ocidentais, o Uzbequistão praticamente parou de usar estudantes nas plantações. Para substituí-los, as autoridades voltaram-se para seus pais.
É um dos sistemas de trabalho agrícola mais bizarros do mundo --possível, talvez, apenas em uma das sociedades mais enclausuradas e repressivas do mundo. País mais populoso da Ásia Central, com 30 milhões de habitantes, o Uzbequistão é governado desde 1989 pelo presidente Islam Karimov, primeiro como um burocrata soviético e depois como chefe de Estado. A Human Rights Watch estima que o país tenha mais presos políticos do que o resto dos países da antiga União Soviética juntos.
Nas palavras do governo, todos esses professores, médicos, burocratas, funcionários de pequenas empresas, engenheiros e arquitetos se "voluntariam" para algumas semanas de trabalho a cada ano.
"O governo não investe em nenhuma mecanização porque tem mão de obra barata, e o algodão colhido à mão é mais valioso", disse Sergei V. Naumov, repórter do Ferghana.news, um site de notícias da Ásia Central, que vive no Uzbequistão e cobriu a colheita por uma década.
Em termos mais simples, trata-se de um sistema de trabalho forçado, dizem grupos de direitos humanos e organizações internacionais que monitoram o trabalho, um antigo flagelo do setor do algodão que voltou à vida. Com o seu monopólio do setor, o governo compra algodão bem abaixo do preço do mercado mundial, colhendo lucros exorbitantes que ajudam a equilibrar o orçamento. Em troca, oferece aos agricultores mão de obra gratuita.
Ainda assim, o setor de vestuário internacional, que já tolerou o trabalho forçado de crianças nas plantações do Uzbequistão e sofreu publicidade negativa por depender de fábricas asiáticas com péssimas condições de trabalho, estendeu seu boicote ao trabalho forçado de qualquer espécie no Uzbequistão. Até agora, 136 empresas , incluindo a Disney, Fruit of the Loom, Gap, H&M, Levis e Wal -Mart se comprometeram a evitar comprar algodão do Uzbequistão enquanto a prática continuar.
Essa ameaça não é ouvida aqui durante os meses de colheita, de meados de setembro a meados de novembro, quando mais de 1 milhão de pessoas são enviadas das cidades e vilarejos para as vastas plantações cheias de lama e pés de algodão carregados. Lá, as condições para os professores e médicos não são tão diferentes das dos escravos do passado, mas com um toque moderno.
"Ninguém apanha de chicote", disse Muhabbat Abdullayeva, professora do ensino fundamental, em uma entrevista numa vila perto de Samarcanda.
Mas não se "voluntariar" pode levar a uma demissão ou à prisão.
Quando chega a época da colheita, os gerentes de escritório e diretores de escolas dividem os funcionários em dois grupos, depois fazem um rodízio deles entre a colheita de algodão e as tarefas comuns. Aqueles que não estão colhendo trabalham o dobro do período ou, no caso dos professores, juntam duas salas de aula.
Neste sistema, o chefe no trabalho também é o seu chefe nas plantações. As habilidades na colheita de algodão transformam-se num componente das avaliações anuais no trabalho, influenciando as decisões sobre promoções, disse Dmitri Tikhonov, ativista de direitos humanos e autoridade nas políticas de colheita de algodão do Uzbequistão.
Em junho, o Departamento de Estado classificou o Uzbequistão na categoria mais baixa por tolerar o tráfico de pessoas e trabalho forçado.
"O que torna a situação no Uzbequistão tão incomum é que o governo do país funciona como o traficante-mor, mobilizando a população com o uso de funcionários em todos os níveis", disse em entrevista Steven Swerdlow, pesquisador da Ásia Central para a Human Rights Watch. "Milhões de cidadãos colhem algodão em condições abusivas, expostos a pesticidas, sem água potável, com moradia inadequada, num trabalho pelo qual recebem pouca ou nenhuma remuneração."
A médica Khidoyatova, numa entrevista em sua cozinha, disse: "Todo outono, nos últimos 22 anos, todos os anos desde a independência do Uzbequistão, tive que colher algodão, e a cada ano as coisas ficam piores."
Cada colheita de algodão, por sua vez, mostra mais sinais de disfunção na economia, em geral por causa da ausência dos funcionários. Hospitais fecham para todos, exceto para emergências. O sistema de benefícios sociais para, uma vez que os burocratas que entregam as pensões não estão em seus escritórios.
O governo do Uzbequistão caracteriza a ampla participação das pessoas na colheita como algo que preserva a tradição ou um serviço patriótico, semelhante a se voluntariar para a Guarda Nacional ou uma limpeza de bairro. Os funcionários recebem cerca de 66 centavos de dólar por quilo, uma ninharia mesmo no país. Às vezes, o custo de uma passagem de ônibus e de alimentação é maior do que esse pagamento, o que significa que os funcionários trabalham por nada ou até mesmo acabam devendo ao Estado.
Em um discurso em outubro, Karimov elogiou os cidadãos, dizendo: "Desde tempos antigos o algodão tem sido visto como um símbolo de alvura, de pureza espiritual. E só as pessoas de mente pura e alma bela são capazes de cultivá-lo."

Reportagem de Mansur Mirovalev e Andrew E. Kramer, para o The New York Times, reproduzido no UOL. Tradutor: Eloise De Vylder

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