quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

A síndrome de Virgínia Lane

As Comissões da Verdade flertam perigosamente com a síndrome de Virgínia Lane. João Goulart foi envenenado e Juscelino Kubitschek morreu num acidente provocado por um atirador de elite. Daqui a pouco aparecerá alguém sustentando que Carlos Lacerda também foi assassinado pela ditadura. Os três morreram entre agosto de 1976 e maio de 1977. Para quem gosta de romance policial, há aí um prato cheio.
Vive no Rio Grande do Sul, em liberdade condicional, o ex-agente dos serviços de segurança uruguaios Mário Neira Barreiro. Foi condenado por roubo e posse ilegal de armas pela Justiça brasileira e o governo de seu país pede sua extradição, por outros crimes. É dele a formulação implausível de que em 1976 saiu da Presidência da República a ordem para matar João Goulart. Nessa versão, trocaram-se os comprimidos da caixa de remédios de Jango. Cardiopata, ele já tivera dois infartos e morreu na sua fazenda argentina, ao lado da mulher. Os restos mortais do presidente estão sendo examinados por uma equipe de legistas. Será deles a última palavra. Uma coisa é certa: Neira Barreiro é um delinquente.
Noutra denúncia, Juscelino Kubitschek teria morrido porque seu motorista foi baleado com um tiro na cabeça enquanto dirigia na via Dutra. Atravessou a pista e chocou-se com uma carreta. Cena de filme. A advogada Maria de Lourdes Ribeiro, filha do motorista, disse ao repórter Pedro Venceslau: "Foi um acidente. Essa tese do tiro é muito primária para mim, que sou advogada".
Existem hoje no Brasil mais de uma dezena de Comissões da Verdade. Há a federal, as estaduais, as municipais e as autárquicas. Enquanto os comandantes militares não reconhecerem que praticaram-se torturas nas suas masmorras, essas comissões podem fazer bem. Por exemplo: como sumiram dezenas de guerrilheiros que estavam no Araguaia? (Foram assassinados, mesmo quando se entregaram.)
Numa revelação espetacular, saiu da Comissão Nacional da Verdade a prova de que o deputado Rubens Paiva estivera no DOI do 1º Exército em janeiro de 1971, quando desapareceu. A versão oficial da época, desmascarada em 1978 pelos repórteres Fritz Utzeri e Heraldo Dias, dava conta de que Paiva fora resgatado por militantes de esquerda quando era transportado no banco de trás de Volkswagen, escoltado por um capitão e dois soldados da Polícia do Exército. (Paiva era um homem corpulento.) Provou-se assim que um preso dado como fugitivo, preso estivera.
Noutro lance, o ex-policial João Lucena Leal disse em maio à Comissão Nacional da Verdade que existiu um plano para sequestrar João Goulart e Leonel Brizola. Em novembro contou ao repórter Lucas Ferraz que mentira no caso de Jango.
Estão vivos oficiais que sabem como foram assassinados os guerrilheiros do Araguaia e como o cadáver de Paiva foi retirado do DOI. Tão importante quanto conhecer os detalhes de cada crime é a busca dos mecanismos de poder e de persuasão que transformaram oficiais do Exército em assassinos, no cumprimento de ordens de generais, ministros e presidentes.
E Virgínia Lane? Ela tinha o título de A Vedete do Brasil e pernas inesquecíveis para o gosto da época. Nonagenária, revelou como morreu Getúlio Vargas: "Eu estava na cama com ele quando mataram ele". Está no YouTube. É um regalo.


Texto de Elio Gaspari, na Folha de São Paulo.

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