Anos atrás, comprei em Londres uns cartões de Natal que faziam uma paráfrase do célebre "Keep Calm and Carry On" (fique tranquilo e continue). No caso, a frase era apenas um "Keep Calm, It's Only Christmas" (fique tranquilo, é apenas Natal).
Foi sucesso de bilheteria: as pessoas agradeciam o cartão e depois começavam um longo rol de misérias pessoais que a quadra traz consigo. Simplificando, existem dois grupos: os ansiosos e os deprimidos.
Os ansiosos começam a sofrer em finais de outubro, inícios de novembro. Com os presentes que é preciso comprar (ou evitar); mas sobretudo com a logística que é preciso respeitar: noite de 24 na mãe dele; almoço de 25 na mãe dela; jantar de 25 na própria casa; dia 26 no manicômio da cidade.
O "espírito de Natal", para esses infelizes, é muito semelhante a uma prova universitária que é preciso fazer todos os anos, com os mesmos professores, sobre a mesma matéria. O eterno retorno da etiqueta. E com possibilidade de reprovação.
Os deprimidos são outra história: incapazes de viver o Natal presente, eles são como Mr. Scrooge, o personagem de Dickens, só que perpetuamente condenados a viverem apenas os Natais passados.
Aproxima-se o dia 24 e é vê-los, meditabundos e lacrimejantes, recordando as companhias que tiveram e já não têm; as oportunidades que surgiram e já não surgem; os lugares por onde passaram e onde já não passa nada.
Para os ansiosos, o Natal é uma prova; para os deprimidos, uma provação: uma forma de serem novamente esfolados vivos pelos fantasmas do fracasso e do arrependimento.
Um amigo meu, usualmente solar, hiberna sempre dia 24 e só ressuscita dia 26. Hiberna em hotéis ("são mais impessoais") ou, de vez em quando, cruzando os céus quando as famílias terráqueas se reúnem cá em baixo. "É mais fácil assim", dizia-me ele há uns meses, recusando qualquer convite para um jantar lá em casa. E a sentença final: "Eu só quero que o Natal passe depressa, João".
E quando não são as provações pessoais, são as profissionais. Não sei quando começou a moda das "festinhas de escritório". Mas espanto-me por não haver notícias na TV de chacinas em massa durante esses encontros.
Colegas que não se falam e até se apunhalam todo o ano surgem nessas "vernissages" com um amor pelo próximo que faz das figuras de cera do Madame Tussauds verdadeiros seres de carne e osso.
Pergunta-se pelos filhos (cujos nomes se desconhece) e pela saúde dos progenitores (entretanto já falecidos e enterrados). Brinda-se ao nada. Tiram-se fotos, muitas fotos, para vender alegria "sincera" no Facebook. E depois regressa-se a casa com os músculos do rosto doridos.
Quando janeiro começa, o escritório é o que sempre foi: um ringue de inimigos e estranhos. Como sobreviver a tudo isso?
Primeiro que tudo, apagando o verbo "sobreviver" da gramática natalina. Não há nada de que sobreviver se o dia 24 for igual ao 23. E a única forma de o tornar igual é retirar do 25 os contornos de "juízo final" com que nos danamos ou salvamos.
No fundo, devemos ser o oposto de Logan Mountstuart, o personagem de "Any Human Heart", a série de TV inspirada no livro (mediano) de William Boyd. Não sei se já falei dela nesta Folha. Provavelmente.
Mas nunca é demais repetir, até como sugestão natalina: na série, Mountstuart é um escritor torturado pelos erros que ensombram os seus dias. As mulheres que perdeu. Os amigos que o deixaram. E, claro, os romances que ele nunca conseguiu escrever.
Ao longo da vida, ele vai anotando esses erros nas páginas do diário --um exercício confessional a que ele, o grande romancista, concede diminuta importância.
E, no entanto, são os diários que ficam depois da morte. Como se os diários fossem o resumo mais autêntico de uma vida verdadeiramente autêntica: uma vida que é feita de toda a sorte e de todo o azar. Mas que também é definida pela forma como gostamos de a ver e contar.
Porque é sempre possível contar a mesma vida de duas perspectivas distintas: a perspectiva derrotista de Logan Mountstuart; e a perspectiva de sucesso que a posteridade concedeu aos seus diários --e, no limite, à sua vida e até aos seus erros.
Não se martirize, leitor. Raramente somos os melhores juízes em causa própria. Brindar ao Natal deveria ser, tão simplesmente, brindar ao pouco que sabemos --e ao muito que um dia se contará sobre nós.
Texto de João Pereira Coutinho na Folha de São Paulo.
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