Há os que falam em violência. Mas apenas falam, não sentem. Há os que falam em exclusão, discriminação e preconceito. Também, entre estes, há quem nem saiba como é, de verdade. E há os que falam em segurança pública. Por medo, oportunismo ou ódio. Ou mágoa (até justa) de vítima. Então brotam discursos inflamados estilo Hitler, cântico de pilotos dessas máquinas caça-níqueis que caçam votos. Chamam de lixo humano os desiguais e bradam: lixo se elimina. Não menos propensos a suspiros nazistas, na hipocrisia cotidiana, são os que jamais se assumem eliminadores deste lixo, mas assim o admitem e o desejam (pelo menos) sob o tapete.
Já li muitos livros maravilhosos, de autores fantásticos. Mas “O Beijo na Parede”, de Jeferson Tenório (Sulina) está entre as mais belas obras que tive o prazer de ler em toda a minha vida. Romance, Prêmio AGES Livro do Ano 2014. O narrador é João, onze anos: negro, pobre, perde a mãe e se depara com o pai (viciado em jogo e álcool) enforcado no banheiro. Dá de cara com dureza da vida e a necessidade sobreviver sozinho antes do previsto. “Sou um menino meio precoce”, anuncia. E que histórias nos conta! Que lições, que poesia, que audácia do autor! Um menino pelas ruas de Porto Alegre e suas migalhas. De comida, de afeto, de atenção. Ele e seu exemplar de “Dom Quixote”, que mal consegue ler, mas leva como símbolo de quando teve um lar, onde o livro era só o calço de uma mesa com pé quebrado.
O beijo na parede é uma fuga à solidão. É descoberta, é pergunta sem resposta. O olhar de João sobre o mundo encanta. Desconcerta. O carinho que sabe ter, na adversidade, não discrimina a prostituta que o acolhe, o travesti, o velho solitário, o médico, o livreiro, os parceiros de rua e abrigo, o pangaré Campeão ou o professor Divino, que teve problemas na escola por preferir ensinar humanidades aos conteúdos distantes e fechados de ciências. João tem tristezas. E ternura. Tenório não rotula: todos podem ser amores, alegrias, frustrações, sonhos e mágoas. São seres humanos, heróicos em seus nadas. Capazes de grandes gestos em seus mínimos mundos. E que estão aí, aqui, ali: para uns invisíveis, incômodo a outros. Mas gente. Como a gente.
Gostaria que policiais, professores, assistentes sociais, conselheiros tutelares e profissionais de saúde lessem “O Beijo na Parede”. Integrantes do Ministério Público e Poder Judiciário. Políticos. Estes, mais que todos. Entenderiam porque certas “ações” são falsas, não funcionam. E porque se insiste: sempre há possibilidades. Já os intolerantes, os que acham que violência resolve violência, estes deveriam virar parede. E ler. Reler. Até se permitir beijar por João. Para entender porque os humanos, sempre tão diferentes e tão imperfeitos, são absolutamente tão iguais.
Reprodução do Blog de Oscar Bessi, no Correio do Povo.
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