Mukesh Singh tem um semblante tranquilo, quase bovino. Senta-se relaxado na cadeira e olha bem para a câmera.
"Uma garota decente não está fora de casa às 9 da noite; a mulher é muito mais responsável por um estupro do que o homem".
Mukesh está dentro de uma cela em uma prisão em Delhi. Ele foi condenado à morte por enforcamento pelo estupro da estudante de fisioterapia Jyoti Singh.
Jyoti sofreu um estupro coletivo em 16 de dezembro de 2012 em um ônibus em Delhi. Morreu em 29 de dezembro em um hospital em Cingapura devido a ferimentos internos.
Ela tinha ido assistir ao filme "A Vida de Pi" com um amigo e pegou o ônibus que Mukesh dirigia.
Ela e seu amigo foram espancados. Depois, cinco homens se revezaram estuprando a estudante no fundo do ônibus.
Um deles, de 17 anos, enfiou a mão em sua vagina e arrancou seus intestinos. Jyoti e o amigo foram jogados na rua, nus.
"Ela não deveria ter reagido enquanto era estuprada, deveria ter ficado quieta, aí a teriam deixado em paz após o estupro", diz Mukesh, 28, em entrevista para o excruciante documentário "India's Daughter".
A Plan International Brasil deve trazer a diretora ao Brasil para fazer uma exibição do filme no segundo semestre.
A diretora Leslee Udwin conta em detalhes essa história chocante no documentário, lançado no dia 8 de março em todo o mundo.
Menos na Índia. O documentário foi censurado no país porque poderia causar "tensões sociais".
Além de entrevistar um dos estupradores, que não demonstra nem sombra de remorso, a diretora vai atrás dos pais dos criminosos, de Jyoti, da mulher de um dos estupradores, de um amigo da estudante, de legisladores e de autoridades.
Os advogados de defesa dão um excelente exemplo da mentalidade misógina que ainda reina no país.
"No momento em que ela saiu de casa com um homem que não era nem seu marido, nem seu irmão, ela deixou para trás sua moralidade e reputação", diz um deles.
"Se minha filha ou minha irmã fizesse sexo antes do casamento e se desgraçasse, eu a levaria para minha fazenda e, na frente da família toda, despejaria petróleo nela e a queimaria viva", diz outro.
Os quatro acusados foram considerados culpados e condenados à morte. O menor foi condenado a três anos.
Centenas de milhares de pessoas foram às ruas na Índia protestar contra o desrespeito às mulheres depois do estupro de Jyoti. Com a pressão popular, houve reformas no Código Penal, embora ainda falte muito.
No Brasil, o estupro coletivo de quatro meninas no Piauí ganhou destaque na imprensa na semana passada.
Mas só depois de um longo e constrangedor silêncio, como apontou a jornalista Cláudia Collucci e a colunista Mariliz Pereira Jorge. "Onde estão as feministas numa hora dessa? Gritando por causa de nome de esmalte ou por causa de propaganda de cerveja", disse Mariliz.
Ok, não estou querendo comparar a condição da mulher na Índia e no Brasil.
Mas o fato de o estupro não ter gerado mais revolta (será por ser no Piauí? Com meninas pobres?) é muito sintomático.
Um documentário sobre o que ocorreu no Piauí –quem eram as meninas, os estupradores, as famílias– traria uma boa reflexão.
Mas, primeiro, é preciso saber se os adolescentes e o homem presos no Piauí realmente cometeram o crime (o Brasil tem uma tradição de bodes expiatórios, vide a prisão de um dos menores que "teria" assassinado o médico na Lagoa, no Rio).
E tampouco seria um documentário para defender a redução da maioridade penal.
Mas, sim, para tentar entender, se é que é possível, de onde vem a barbárie.
Texto de Patrícia Campos Mello, na Folha de São Paulo.
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