sexta-feira, 26 de junho de 2015

A maioridade penal

Pelas últimas pesquisas Datafolha, nove brasileiros em cada dez aprovam a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos.
Misteriosamente, o debate sobre a redução da maioridade penal se tornou um debate político. Talvez porque a proposta tenha sido apoiada por deputados considerados de direita (a dita bancada da bala).
Ou talvez por causa de um cálculo, que pode ser certeiro, mas cuja conclusão não convence: 1) em sua maioria, os menores infratores são de família pobre; 2) portanto, a redução da maioridade penal colocará mais adolescentes pobres na cadeia; 3) conclusão: essa mudança é um ataque contra os pobres.
Ou ainda porque punir é considerado um verbo "de direita", enquanto verbos de esquerda seriam "entender, explicar, reeducar". Nota: cá entre nós, reeducar pode ser muito pior que punir.
Enfim, um leitor me pergunta se estou satisfeito. Claro que não. Eu não sou a favor da redução da maioridade penal: sou contra a própria ideia de definir uma maioridade penal.
Qualquer data que a gente estabeleça é arbitrária. Se assalto e mato com 15 anos e 364 dias, serei um menor infrator. Se assalto e mato no primeiro dia de meus 16 anos, ou seja, 24 horas depois, serei um adulto criminoso. É bizarro.
As razões invocadas para justificar o estatuto do menor vão desde a pouca experiência de vida até o desenvolvimento incompleto do córtex pré-frontal.
Mas há adultos com uma experiência de vida miserável, assim como há adultos impulsivos cujo córtex pré-frontal, provavelmente, não é muito mais desenvolvido que numa crianças de nove anos. Por que as mesmas razões não valeriam como justificativa para esses adultos?
Acredito que há crimes que são, por assim dizer, próprios da adolescência, de sua rebeldia, de sua inconsequência e mesmo de sua estupidez. E há crimes que são crimes, e basta. O critério não é só a gravidade, mas também a motivação, as circunstâncias, os precedentes, ou seja, fatores que dificilmente podem ser enumerados num Código Penal. Por isso, acho que um juiz ou um júri deveriam decidir, em cada caso, se um acusado será julgado como menor ou como adulto.
Aparte: se não confiarmos em juízes e júris, melhor desistirmos da própria ideia de poder judiciário, não é?
Quatro adolescentes, no fim de maio, em Castelo de Piauí, estupraram, cegaram, torturaram e tentaram assassinar a pedradas quatro meninas, uma das quais morreu. Não é só o requinte de crueldade, mas também a atitude deles diante de seu próprio ato e da Justiça, junto com uma total falta de empatia, que me convencem de que não foi um crime "adolescente", e que eles devem ser julgados como adultos.
Os acusados são meninos econômica e culturalmente miseráveis. Concordo, mas 1) de novo, se a miséria econômica e cultural for uma atenuante, por que ela não valeria também para os criminosos adultos?; 2) a miséria cultural nem sempre é apenas uma imposição do mundo (a escola é ruim, os pais não valorizam), pode também ser escolha do indivíduo ("não quero estudar, quero ser bandido").
Outros alegarão que os adolescentes podem mais facilmente ser "recuperados" por medidas socioeducativas; portanto, encarcerá-los seria um desperdício. Concordo com a ideia de que o encarceramento de jovens julgados como adultos aconteça em cárceres distintos dos para adultos. Mas, antes disso, acredito que nenhuma medida socioeducativa possa começar com uma espécie de desculpa; ao contrário, não vejo como a gente pode esperar recuperar quem quer que seja sem começar pelo reconhecimento da plena responsabilidade do indivíduo pelos seus atos.
Na verdade, na discussão sobre a maioridade penal, o que está em jogo não é a infância, não é a adolescência, mas é a nossa visão da infância e da adolescência, como épocas de preparação e de suposta "felicidade" infantil.
A mesma pesquisa Datafolha que citei antes relata que, entre as razões a favor da redução da maioridade penal, está o fato de que os jovens de hoje "amadurecem mais cedo". É o contrário: os jovens amadurecem cada vez mais tarde; numa progressão linear, nos últimos 200 anos, eles são infantilizados, privados de deveres, direitos e responsabilidade.
Nesse quadro, reduzir a maioridade penal é uma virada cultural. Talvez estejamos enfim dispostos a parar de idealizar a infância e a termos jovens um pouco mais adultos mais cedo.


Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo

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