sábado, 31 de outubro de 2015

Tchau, passado

Parece que foram umas 150 caixas. Minha vida em 150 caixas. Mudar de casa é fazer terapia intensiva e forçada. Sem ninguém sentado em frente, ao lado ou atrás para dizer que não é o fim do mundo, mesmo que pareça ser.
Não é o fim do mundo, mas é virar mais uma página da vida. A gente não fecha só a porta, mas também um ciclo. Deixa para trás um punhado de roupas datadas, sapatos velhos, panelas gastas, móveis surrados, guarda-chuvas quebrados e uma mala de emoções. Deixa também um pouco do que a gente não é mais.
Em cada armário desfeito uma sessão de tortura. Em cada caixa aberta uma sessão de vergonha. Em cada prateleira vazia uma sessão de descarrego. Em cada gaveta vasculhada uma nostalgia da boa.
E chora. E ri. E tem saudade. E sente alívio. E fica triste. Depois feliz de novo. E o estômago embrulha. E desembrulha.
Quando a gente muda de casa não engole só pó. Engole todos os erros e tropeços em fotografias antigas, cartas de amores falidos, roupas equivocadas, livros não lidos, objetos desnecessários, equipamentos que não funcionam mais.
Deixa para trás um punhado de lembranças boas, de tempos que não voltam mais, ainda que os novos tempos produzam mais lembranças que serão felizes no próximo futuro.
Ainda ontem eu morava sozinha. Mas quem padecia de solidão era a geladeira. Tinha água com gás, iogurte, gelo e cerveja. Um fogão italiano que brilhava como novo por falta de uso. Uma TV que estava sempre desligada. Uma cama onde eu dormia pouco e me divertia muito.
Eu era solteira, era feliz e sabia disso. Mas também sabia que um dia aquela casa não seria mais minha e nem aquela vida.
Ainda ontem, eu já não era apenas mais eu. A gente se apertava na cozinha pequena, fazia maratona de série de TV, comia sorvete no inverno, brigava pela mesa do escritório, dormia agarrado –socorro, acordava com o vento uivando, viajava sem parar. As plantas sempre morriam.
Com essa mudança vem nossa coleção de action figures, 20 caixas de utensílios de cozinha, uma girafa da Tailândia, outra de Jericoacoara, duas bicicletas, dois computadores, trocentos livros, trocentas revistas em quadrinhos, quadros, quadros, quadros.
Mais importante de tudo: nessa mudança de casa vem um casamento sólido, feito de muita trombada, muita paciência, uma tonelada de amor e amizade.
'A gente' foi a melhor coisa da minha vida nos últimos anos e na última casa. Passei a conjugar 'a gente' 24 horas por dia e nunca fui tão feliz.
Na nova casa, sinto como se estivesse no primeiro dia de um trabalho novo. Não sei onde fica a impressora, a máquina de café, se os vizinhos de baia são fofoqueiros, se tem um restaurante por quilo decente, se consigo uma manicure boa por perto.
Sinto como se fosse uma estranha fazendo uma visita. Nas primeiras noites acordei sem saber onde estava, tive que acender a luz do celular para achar o banheiro, dei cinco topadas nos armários até chegar lá.
Levei um banho da torneira da pia, não sei onde acendem as luzes, paguei peitinho e bundinha para geral na vizinhança, coloquei o lixo comum junto com o reciclado, derrubei água na varanda da vizinha, que já me odeia, mas fiz amizade com o porteiro, que é o que realmente importa.
Mudar de casa não é apenas levar suas coisas de um lugar para o outro. A gente tem que desencaixotar as bugigangas e também as emoções. Só vira casa quando nossos velhos cacarecos parecem à vontade com essas paredes pintadas e esse chão novinho. Quando o sono começa a dormir sem sustos. Quando a gente vai ao banheiro à noite sem tropeçar no escuro. Quando a gente olha mais para frente do que para trás.
Fica mais fácil mudar de casa quando a gente está pronto para mudar também.


Texto de Mariliz Pereira Jorge, na Folha de São Paulo

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