domingo, 4 de outubro de 2015

Chalámov compõe panorama doloroso sobre época stalinista

CRÍTICA LITERATURA/CONTOS

Chalámov compõe panorama doloroso sobre época stalinista

Autor russo narra sua experiência em campos de trabalho forçado na Sibéria
MAURICIO PULSCOLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Os "Contos de Kolimá", do russo Varlam Chalámov (1907-1982), compõem um painel doloroso sobre a repressão política na era stalinista (1924-1953). Acusado de apoiar Trótski (1879-1940), Chalámov ficou preso quase 20 anos, a maior parte deles na Sibéria.
Trabalhando até 16 horas por dia em campos na região de Kolimá, Chalámov conseguiu sobreviver ao frio e à fome, às doenças e aos soldados. Libertado em 1951, aceitou permanecer na cadeia como enfermeiro até 1953, para reunir algum dinheiro.
Só voltou a Moscou após a morte de Stálin. Começou então a escrever os seis volumes dos "Contos de Kolimá" –cujo primeiro tomo é lançado agora pela editora 34. Reabilitado em 1956, conquistou fama como poeta. Viveu ainda o suficiente para ver a publicação de seus contos na Inglaterra e na França –na União Soviética, porém, isso se deu apenas em 1989.
O impacto provocado pela leitura dessa obra contribuiu para que os partidos comunistas ocidentais finalmente reconhecessem a existência do "Gulag" stalinista (sistema de trabalho forçado), como assinalam os sociólogos Christian Laval e Pierre Dardot em "Comum - Ensaio sobre a Revolução no Século 21".
Bastante admirado pelo escritor italiano Roberto Saviano ("Gomorra"), Chalámov não acredita que a literatura possa "corrigir" os homens ou "evitar" os massacres. Mas julga que tem o dever de deixar seu testemunho sobre o que viu: "Fidedignidade, eis a força da literatura do futuro".
A atmosfera dos "Contos de Kolimá" recorda muito a descrição dos governos despóticos feita por Montesquieu em "O Espírito das Leis": "Nesses Estados nada se repara, nada se melhora. Constroem-se casas para apenas uma vida; não se planta árvore alguma".
De fato, nos campos de trabalhos forçados de Stálin, o horror era uma presença tão constante que ninguém fazia planos "nem mesmo para o dia seguinte". Os suicídios eram rotineiros.
Na Sibéria não era preciso ter imaginação para produzir contos kafkianos: bastava a vista. Certa vez um engenheiro comunicou seu supervisor que o injetor de uma caldeira tinha parado de trabalhar e estava atrasando o serviço de toda uma brigada. Em resposta, o chefe ordenou a detenção do "prisioneiro injetor por três dias" e a "sua inclusão em regime mais rigoroso".
Noutro texto, o protagonista encontra o caderno de desenho de uma criança quando revirava um monturo em busca de restos de comida e meias rasgadas. "Era um caderno assustador." Nele não figuravam paisagens familiares, povoadas de camponeses e operários: só casas rodeadas por arame farpado, guaritas e sentinelas com fuzis: "A criança não se lembrava de mais nada".
No assombroso conto "Xerez", Chalámov reconstitui o último dia do poeta Óssip Mandelstam: "O poeta estava morrendo há tanto tempo que não entendia mais que estava morrendo". E assinala que sua morte demorou dois dias para ser constatada oficialmente porque seus colegas de alojamento devoravam as pequenas porções de alimento destinadas ao defunto.
Com base em suas vivências, Chalámov critica o Dostoiévski de "Recordações da Casa dos Mortos". Para ele, seu antecessor não conheceu o verdadeiro mundo do crime: "Por esse mundo, Dostoiévski não se permitiria expressar nenhuma compaixão".
"O campo é inteiramente uma escola negativa de vida. Ninguém leva daqui nada de útil, nada de bom... Cada minuto de vida no campo de prisioneiros é um minuto envenenado... Quando volta a ser livre, ele vê que não apenas não cresceu durante a estada no campo, como também os seus interesses estreitaram-se, tornaram-se pobres e grosseiros."
Talvez no século 19 tudo fosse diferente: "A época de Dostoiévski era outra, e os trabalhos forçados daquele tempo ainda não tinham alcançado o extremo de que se fala aqui".
O certo, porém, é que "as condições de vida 'difíceis' que, segundo nos dizem os contos da literatura de ficção, são indispensáveis para o surgimento da amizade, na verdade não são assim tão difíceis. Se a desgraça e a carência reunidas geram amizade entre as pessoas, então isso significa que a carência não é extrema e a desgraça não é grande".

CONTOS DE KOLIMÁ
QUANDO Varlam Chalámov
TRADUTORAS Denise Sales e Elena Vasilevich
EDITORA 34
QUANTO R$ 49 (304 págs.)
AVALIAÇÃO muito bom

Reprodução da Folha de São Paulo

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