O nome de um dos mais importantes poetas do mundo, vencedor do Nobel de Literatura de 1971 e militante do Partido Comunista, esteve em debate no Parlamento do Chile. Um projeto de lei visa homenagear Pablo Neruda dando seu nome ao aeroporto da capital Santiago.
O que teria tudo para ser uma votação tranquila e estreme de dúvida, dado a justeza da homenagem ao poeta e ex-senador, converteu-se em material de análise para compreensão da conjuntura atual latino-americana, a partir dos debates que o projeto suscitou.
Dois argumentos foram levantados pelos parlamentares para justificar a recusa ao projeto. O primeiro deles é relativo ao fato de o poeta ter sido militante do Partido Comunista. O deputado Ignacio Urrutia, do partido UDI (de extrema direita), chegou a dizer que "Neruda é uma figura que divide os chilenos, temos muitas figuras melhores, que são capazes de nos unir como país".
Jorge Rathgeb, do partido Renovação Nacional, também questionou o projeto, alegando que "Neruda poderia dar nome a um Centro Cultural, mas não a um aeroporto. Seria como batizar um hospital com o nome de Ivan Zamorano (jogador de futebol chileno dos anos 1990)".
A resistência em homenagear uma das figuras mais reconhecidas da literatura é um sintoma claro de que os espectros autoritários ainda nos rondam. A falta de uma efetiva reparação da verdade histórica daquilo que representou os regimes militares em nosso continente possibilita o regresso desses fantasmas do passado.
Por aqui não é diferente. O ranço autoritário se faz presente cotidianamente através de manifestações pela volta do regime militar, pelos números da violência policial contra jovens pobres e negros, pelos famigerados autos de resistência, pelos justiçamentos, pela aprovação de projetos de lei de claro conteúdo antidemocrático ou pelo fenômeno da espetacularização da justiça.
Todos estes fatos levam à desvalorização da democracia como um valor de conquista histórica e patrimônio do povo brasileiro.
A falta de uma efetiva busca pela verdade histórica, a tibieza no cumprimento do relatório final da Comissão da Verdade e a ausência de responsabilização pelos crimes cometidos por agentes públicos durante a ditadura criam um perigoso vácuo histórico, que é o substrato para o ressurgimento do pensamento fascista que assistimos nos dias de hoje.
Em Lisboa, a ponte mais importante sobre o Tejo chamava-se António de Oliveira Salazar. Foi preciso a revolução dos Cravos para rebatizá-la com o nome de 25 de Abril. Aqui, na Câmara dos Deputados, projetos de lei tentam rebatizar a ponte Costa e Silva com os nomes de Betinho e Honestino Guimarães, ambos militantes do combate à ditadura.
Muitas estradas e pontes em nosso país ainda levam o nome de generais e torturadores. Símbolos de um passado sombrio ainda não devidamente esclarecido pela história.
O desapreço pela democracia leva a que forças políticas tentem, sem qualquer cerimônia, derrubar governos democraticamente eleitos. Seja em Honduras, Paraguai ou com as malfadadas tentativas de golpe por parte do DEM e PSDB, no Brasil.
Infelizmente, em vez de caminhar para um aprofundamento democrático, vivemos um contexto de retrocesso preocupante. É preciso compreender o passado para projetar o futuro. Atualmente, não temos elementos para compreender o primeiro, o que leva a uma incerteza e desesperança quanto ao segundo.
E aquele voo que poderia partir do aeroporto Tom Jobim e pousar no aeroporto Poeta Pablo Neruda ainda é um pouco distante de se tornar realidade.
E muitas pontes ainda esperam o devido rebatizado. Aguardam por Nerudas, Rubens Paivas e Iaras. Pontes e aeroportos que levam nomes de torturadores e figuras desonrosas de nossa história não realizam a devida travessia. São metáforas concretas da inacabada luta democrática dos países latino-americanos.
Texto de Wadih Damous, no UOL.
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