sábado, 24 de outubro de 2015

O personagem do escritor de literatura

Semana passada, me vi mais uma vez performando no palco de uma feira literária. Nos últimos dez anos, ganhei mais dinheiro falando sobre meus livros em eventos pelo país do que com a publicação deles. Depois, costumo beber num bar de esquina numa daquelas cidades muito parecidas e tristes no meio do vazio do Brasil, me sentindo uma fraude absoluta.
Sempre repito uma fala preparada onde faço uma defesa da literatura a partir da frágil e utilitária ideia de que leitores de romances seriam pessoas melhores porque nestes, ao contrário dos livros de entretenimento e autoajuda, não haveria respostas prontas e sim perguntas. Esses questionamentos atuariam como lanternas a iluminar as arestas da sociedade, com claros efeitos políticos e morais.
Ler os livros certos, portanto, seria uma espécie de antídoto afirmativo contra a crueldade e um acelerador em prol da cidadania. Eu completo, via Vargas Llosa, que a literatura é um "desses denominadores comuns da experiência humana, graças ao qual os seres vivos se reconhecem e dialogam independentemente de quão distintas sejam suas ocupações e seus desígnios vitais, as geografias, as circunstâncias em que se encontram e as conjunturas históricas que lhes determinam o horizonte", e às vezes cito Antonio Cândido: "Assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem a literatura. Deste modo, ela é fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade".
O problema é que essas já me parecem ideias bastante ingênuas, para não dizer completamente despropositadas e absurdas. Não há qualquer evidência ou estudo relevante que confie qualquer um destes efeitos mágicos à leitura de um livro –muito ao contrário.
É por isso que, ao final dessas mesas e debates, tenho que resistir a ideia de interromper os hesitantes aplausos e confessar que romances de ficção são tóxicos e ambíguos –e que o progresso da humanidade deve pouco a eles. Que a Europa ilustrada com Cervantes, Shakespeare, Dante e Tolstói escravizou gerações de negros, índios, analfabetos ou dissidentes políticos. Que Hitler, fanático entre outras coisas por Dom Quixote e Robinson Crusoé, lia um livro por noite e tinha uma biblioteca pessoal de 16 mil volumes, superada, no entanto, pela de outro grande leitor, Stálin, com 20 mil. Que livros não são como suplementos alimentares contendo doses de empatia e inteligência. Que a literatura não é um acelerador moral, não oferece redenção e não tem sentido ético em si.
E, finalmente, que a literatura deve negar completamente qualquer responsabilidade sobre a formação de leitores se ainda quiser ter alguma relevância fora dos picadeiros erguidos com dinheiro estatal para sustentar a ilusão simultânea de que ela 1) tem ou deve ter alguma centralidade cultural, 2) precisa ser salva como o urso panda ou uma borboleta em extinção e 3) não é uma forma de arte elitista por natureza.
E, enfim, dizer que a literatura é morta um pouco cada vez que alguém levanta a voz para defendê-la num desses palcos construídos para que ainda acreditem na sua existência. Deixá-la morrer me parece uma ótima ideia para salvá-la de si mesma.


Texto de J. P. Cuenca, na Folha de São Paulo

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