Antes, eu morava muito longe do trabalho. Mudei para mais perto do trabalho. O trabalho mudou e começou a exigir que eu viajasse toda hora. Mudei novamente de trabalho, para não ter mais que sair da cidade. Mudei então para mais perto desse trabalho. Por fim, comecei a trabalhar em casa.
Antes, se era Paris, que emendasse logo com Londres e Barcelona. Se eram 30 dias, que virassem 40, somando aquela semana que fiz hora extra e o feriado. Com o tempo, mais de dez dias longe de casa já me davam nos nervos. Depois, duas cidades em uma única viagem de cinco dias era coisa de gente que "se desespera com medo de não ter outra oportunidade", o lance é ser fino e curtir uma coisa de cada vez (mentira, eu tava com preguiça, com medo). Aos poucos, Buenos Aires virou o outro lado do mundo. Agora, ponte aérea me faz tomar tarja preta.
Antes, eu ia em todas as festas que me chamavam. Passei a ir apenas às festas de gente que eu realmente conhecia. Depois, apenas nas festas de amigos que comemoram em casa (bar ou balada deixemos para os jovens que ainda têm saúde mental para banheiros imundos). Com o tempo, apenas nas festas dos poucos melhores amigos que não me irritavam, os que irritavam eu fui dando sinais de "cansaço" na amizade até que eles entenderam. Por fim, se o cara morar longe, mesmo sendo o último dos seres que ainda me comove, ameaço ir, mas tem sempre uma azia psicológica que me trava.
Antes, eu circulava meu "Guia Folha" com intensidade, pensando se nove filmes, cinco peças de teatro e quatro exposições seriam possíveis em um único fim de semana. Com o maravilhoso advento do Netflix (e também da Apple TV, do Now e da HBO), passei a escolher com energia apenas as mantinhas antialérgicas para o sofá. Até que, do sofá, eu e a TV mudamos para o quarto.
Antes, eu queria fazer muitos filmes, peças, livros, seriados, novelas, ioga, pilates, filantropia e filhos. E ter muitos amantes e orgasmos e estantes de livros e paredes cravejadas de obras de arte que me dariam um status qualquer de pessoa extremamente ligada ao movimento todo, seja ele qual for. E ser amada pelo público, mas também pelos críticos e pela galera chatola com blog intelectualizado que só 12 pessoas chatolas com outros blogs intelectualizados leem. Hoje, eu quero que a PUC não faça barulho e que os meus médicos tenham horários disponíveis.
Antes, eu tinha bode de viajar com 27 pessoas que nem gosto pra uma casa que eu nem conheço para a praia "segredinho do momento no Nordeste", que nunca era exatamente um segredo porque todos os playboys do país tinham acesso. Depois, eu passei a ter pavor de viajar com 10 pessoas que gosto mais ou menos para uma casa que conheço mais ou menos para a praia "que já saiu de moda e por isso tá mais em conta", que nunca era exatamente barata porque todo mundo tinha essa ideia. Com o tempo, Ano Novo tinha que ser no meio do mato, com apenas mais uma pessoa, lendo livros e com protetores auriculares contra os fogos. Agora, eu tenho taquicardia só de ouvir a pergunta "e Ano Novo, hein?" e sonho com o dia que emendaremos novembro em março, pulando toda essa presepada de peru com família, Roberto Carlos com Simone, trânsito com esperança e Carnaval com armas.
Antes, tinha que ser lindo, bem-sucedido, intelectual, culto, de esquerda, mas com carro e morando na zona oeste. Depois, bastava ser gato, intelectual, morar perto de casa e não me irritar. Com o tempo, bastava ser bonitinho e não me irritar. Hoje em dia, eu curto barba.
Texto de Tati Bernardes na Folha de São Paulo.
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