Orestes dos Santos tinha uns 40 anos quando matou o pai, de forma bárbara. Seu motivo era respeitável. Muito tempo atrás, durante a ditadura militar, o pai tinha torturado e assassinado a própria mãe de Orestes.
Nosso personagem assistiu à cena. Tinha seis anos na época do crime. Passou a vida inteira assombrado pela impunidade do pai monstruoso, sem conseguir encontrá-lo.
Por fim, Orestes consegue localizar o pai. Vai a seu encontro, sem arma nenhuma, para conversar.
Dá-se um entrevero físico. Na fúria, Orestes bate seguidamente a cabeça do velho no piso –o crânio do delator se espatifa, cérebro e sangue se espalham sobre o mármore.
Essa história, inventada mas não tanto, organiza o excelente documentário de Rodrigo Siqueira em cartaz no Shopping Frei Caneca e no Itaú Augusta.
"Orestes", o filme, baseia-se numa tragédia de Eurípides, escrita há 2.500 anos. Mas também em acontecimentos reais, ocorridos durante os anos da repressão política no Brasil.
Rodrigo Siqueira entrevista uma mulher de 40 anos, filha de uma militante torturada e assassinada pelo delegado Fleury. Quem a denunciou para a polícia foi o tristemente célebre cabo Anselmo, que fingia lutar ao lado das forças de esquerda.
Anselmo era amante da jovem –e chegou a solicitar ao delegado Fleury que, se possível, deixasse a moça escapar. Óbvio que isso não aconteceu.
Quarenta anos depois, a filha da militante se confronta com uma dúvida: talvez seu pai seja o próprio Anselmo –e não o antigo companheiro de sua mãe, também morto pela ditadura.
A tragédia está montada. Contudo, mal chegamos a aflorar o conjunto de problemas tratado por Rodrigo Siqueira neste filme.
"Orestes" articula, com grande clareza e economia, o horror associado à repressão política do passado com a realidade, atualíssima, das execuções policiais.
Demorei um pouco para perceber, enquanto depoimentos se sobrepunham às imagens do cemitério de Perus, em São Paulo, que não era mais uma filha de militantes quem falava de seus mortos. Era a mãe de um adolescente, fuzilado pela PM num daqueles casos de "confronto com bandidos" cujo roteiro foi escrito pela carochinha.
Calma. Já estou me exaltando, e "Orestes" mantém, como é obrigação de todo bom documentário, o sangue frio.
Entra em cena outra personagem. Trata-se de uma mulher que milita em prol dos que tiveram familiares vitimados pela bandidagem.
Ela defende a polícia, a pena de morte, o olho por olho e o fuzilamento em flagrante.
Com ajuda de uma terapeuta, Rodrigo Siqueira monta um psicodrama. A defensora do assassinato policial encontra a mãe de um rapaz morto em confronto com a polícia. Junte à cena um PM que discorda dos abusos da corporação; a mulher cuja mãe foi assassinada pelo delegado Fleury –e um ex-torturado, que já se reconciliou, na medida do possível, com suas memórias da prisão.
Já seria mais do que suficiente para um documentário imperdível –mas o diretor não tem preguiça e sabe ramificar seu tema em mais e mais questões, sem nunca perder o fio nem confundir o espectador.
Quando tudo parece se encaminhar para um redemoinho de emoções indecidíveis, o diretor põe em cena um julgamento fictício, com advogado e promotor reais. Discute-se o caso de Orestes dos Santos. Deve ser condenado por ter matado o pai?
O advogado adota a tese, digamos que ingrata, da legítima defesa. Matando o pai, Orestes libertou-se da prisão psicológica a que estava condenado por décadas.
Compreendo o ódio de Orestes, diz o promotor. "Mas tenho medo dele". O que seria da sociedade se cada um fizesse vingança pelas próprias mãos?
A tese também é discutível. Orestes, com certeza, não matará mais ninguém; no seu caso, o Judiciário não lhe oferece alternativas, uma vez que a Lei da Anistia assegura a impunidade do assassino.
Se eu tivesse sido torturado, me vingaria. No filme, o antigo preso político diz que se libertou desse rancor.
Acho que em toda justiça há, sim, um componente de vingança. Só que, num ato de vingança pessoal, ninguém pode alegar inocência. Orestes não está errado, mas deve aceitar que será preso pelo que fez.
Sou ambíguo, portanto, na questão do "olho por olho, dente por dente". Mas, para recorrer a outro clichê, "cada cabeça, uma sentença"; o filme de Rodrigo Siqueira respeita e ilumina as emoções de qualquer espectador.
Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo.
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