quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Sem perspectiva, egícpios começam a abandonar o país

Durante seus anos atuando como dissidente, o editor Mohamed Hashem combateu o governo autocrático do Egito e seus censores, auxiliou os revolucionários durante as recentes manifestações e protestou nas ruas para proteger as liberdades que ele acreditava ter ajudado o país a alcançar.

Mas, como muitos outros egípcios nos dias de hoje, Hashem diz que se sente derrotado pela última reviravolta trágica rumo à violência crescente, à repressão e à guerra civil após os militares terem deposto o presidente Mohammed Mursi, em julho passado. Cansado de esperar por dias melhores, o editor anunciou na semana passada que irá emigrar, surpreendendo seus amigos e uma legião de jovens fãs.

"Eu não vou adiar a felicidade até o dia da minha morte", diz ele.

Há várias gerações, o Egito, país incapaz de proporcionar esperança ou oportunidades a seus habitantes, tem enviado seus cidadãos para países mais prósperos. Mas, da mesma maneira que Hashem, muitos egípcios que atualmente afirmam estar engrossando as fileiras desse novo êxodo se mostravam relutantes em abandonar seu país. Alguns adiaram o desejo de ir embora, esperando que a revolta contra o presidente Hosni Mubarak, ocorrida em 2011, abrisse caminho para uma vida melhor.

A mudança de opinião dessas pessoas sinaliza um momento sombrio para o país. Muitas pessoas dizem que não conseguem vislumbrar o fim do conflito entre os militares e seus oponentes islâmicos, e que não há lugar para aqueles que não professam lealdade a nenhum dos dois lados.

Outros lamentam o estreitamento dos horizontes políticos no Egito e o que parece ser a probabilidade crescente de que um militar se torne o próximo presidente do Egito. Algumas pessoas dizem que ficaram chocadas com a forma sem cerimônia que seus amigos e vizinhos passaram a encarar o aumento da violência e do derramamento de sangue.

E, para todos, ainda não há nenhum alívio em vista para as extremas frustrações do cotidiano: o trânsito, o aumento dos preços, a multiplicação das montanhas de lixo nas ruas.

Não há nenhuma evidência estatística de que mais pessoas estejam emigrando, e essa ideia se mantém longe do alcance da maioria dos egípcios, pois ela se reserva apenas para aqueles que possuem as qualificações ou conexões adequadas para encontrar oportunidades no exterior. No entanto, em entrevistas realizadas durante vários dias com a população local as pessoas revelaram que suas conversas têm abordado com mais frequência e urgência sua saída do país. Aqueles que acreditam que essa viagem é possível estão apenas decidindo quando irão embora.

Enquanto estudava para as provas da faculdade de medicina em um café, Nour Tareq, 23, se sentia confuso com os problemas que precisa enfrentar atualmente. Seu trajeto normal para o trabalho, em um hospital público, foi bloqueado pelos protestos dos partidários de Mursi e por postos de controle do governo. Seu salário, de cerca de US$ 45 por mês, é desprezível demais até mesmo para ser chamado de insulto, diz ele. O toque de recolher noturno imposto pelo governo apoiado pelos militares limitou ainda mais a sua vida.

Nour enfrentou o perigo para construir um futuro diferente, atuando como voluntário em um hospital de campanha durante a revolta de 18 dias contra Mubarak, quando ele foi ferido por um tiro. "Nós vamos voltar ao sistema antigo", disse ele. "Nós não mudamos o país".

Por isso, Nour diz que está se preparando para viajar para os Estados Unidos – mais devido à necessidade do que por opção própria. "Eu preciso sair daqui", diz ele.

Enquanto os cidadãos ficam cada dia mais cansados, o governo insiste que o Egito tem avançado por um caminho democrático e que, em breve, terá uma constituição que conduzirá à realização de novas eleições. Ao mesmo tempo, muitos temem que as eleições simplesmente venham confirmar a restauração da velha ordem, uma vez que os nomes de generais e de oficiais do setor de segurança têm surgido como possíveis candidatos à presidência. Entre os nomes mencionados está o de Abdel-Fattah el-Sissi, o poderoso ministro da Defesa do Egito.

Temendo que o futuro já esteja escrito, Sarah Radwan, 33, designer gráfica, está aguardando para receber um contrato de trabalho que a levará para o Catar, e tem poucos arrependimentos em relação a sua saída do Egito. Após a revolta contra Mubarak, "eu esperava que as coisas melhorassem", disse ela. "Essa era uma espécie de utopia".

Sarah disse que ficou decepcionada com ano que Mursi passou na presidência e que está preocupada com o retorno dos militares ao poder. Ao longo dos últimos dois anos e meio, a frustração de Sarah a levou, assim como a outras pessoas, a tirar conclusões terríveis sobre a capacidade da sociedade egípcia de mudar – de dizer coisas que eram impensáveis há apenas dois anos.

"A corrupção está profundamente enraizada dentro de nós", disse ela. "Eu pensava que levaria cinco anos. Mas nós não estamos sequer dando o primeiro passo". Seguindo o exemplo de várias gerações de egípcios, o pai de Sarah trabalhou no exterior – na Arábia Saudita – e já havia alertado sobre a solidão do autoexílio.

"Eu nunca pensei que um dia iria embora do Egito", disse Sarah que, no passado, tinha apenas considerado se mudar apara uma cidade do litoral do país, como Alexandria, no Mediterrâneo, ou Hurghada, no Mar Vermelho. "Eu amo este país", diz ela. "Eu quero que as pessoas se acalmem".

O desespero atravessa as barreiras ideológicas e ameaça dar continuidade à "fuga de cérebros" que atrofiou o desenvolvimento do Egito durante décadas. Após o governo ter reprimido os partidários de Mursi, matando centenas de pessoas durante os protestos e aprisionando outros milhares, os islâmicos estão sendo perseguidos e expulsos do país, repetindo os sombrios ciclos de repressão e exílio já observados no passado do Egito.

E alguns, que esperavam que o governo apoiado pelos militares traria estabilidade ao país – mesmo que isso significasse governar com mão de ferro –, disseram que estão indo embora porque a segurança já demorou demais a chegar.

Mostafa Sobhy, 32, professor de farmacologia, disse que seu salário depende das aulas ministradas a estudantes estrangeiros de sua universidade. Com o Egito paralisado pela crise política e pelos temores crescentes de uma revolta de militantes, os estrangeiros têm evitado o país. Sobhy disse que aceitou um emprego em Najran, cidade da Arábia Saudita. "As coisas eram melhores no tempo de Mubarak", diz ele.

Na última quarta-feira, Hashem, o editor de livros, anunciou sua decisão de abandonar o país pelo Facebook, onde escreveu que o "pesadelo" do exílio se tornará uma realidade para ele. "Até morrer, eu me recusarei ferozmente em ter que escolher entre a amargura dos militares e a manipulação da religião", escreveu ele. "Eu vou emigrar porque não encontrei algo que expresse o espírito da grande revolução em meio a esses interesses conflitantes".

"Até nosso encontro durante a próxima revolução", concluiu ele.

Em entrevista concedida alguns dias depois nos escritórios em ruínas da Merit, sua editora, Hashem riu ao recordar as amargas reações que seu post gerou. Alguns dos amigos dele, incluindo alguns dos mais conhecidos poetas e artistas do Egito, ligaram para ele para xingá-lo. "Eles disseram, 'Você está sendo um covarde em fugir'", disse ele.

Outras pessoas compreenderam a atitude dele. Mohamed Abdel Nasser, analista que atua na internet, escreveu que a reação de Hashem é a única resposta adequada até que a "loucura" do Egito acabe.

As paredes em torno de Hashem estão forradas pelas as centenas de livros que a Merit publicou, incluindo alguns sobre assuntos tabus que outras editoras tiveram medo de publicar. O post de Hashem no Facebook parece ter sido mais um manifesto do que um plano: ele ainda não definiu seu destino, apesar de ter pensado em ir para algum dos países onde recebeu prêmios relacionados à liberdade literária ao longo dos anos, como a Alemanha ou os Estados Unidos.

Alguns conhecidos, incluindo jovens artistas que passaram horas nos salões literários noturnos de Hashem, visitaram o editor para cumprimentá-lo. Ele disse que essas visitas o fizeram querer reconsiderar a sua decisão de ir embora. "Algumas pessoas estão endeusando Sissi e outras estão endeusando Mursi", afirma ele. "Todos os homens de Mubarak estão por aí, como se nada tivesse acontecido. Não há lugar para gente como nós".

"Eu estou perdido", acrescentou Hashem. "Eu estou muito, muito perdido".


Reportagem de Kareem Fahim, para o The New York Times, reproduzido no UOL. Tradutor: Cláudia Gonçalves

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