domingo, 27 de outubro de 2013

Mulher-Flamingo


A seção de roupas de meninas, nas lojas de departamentos, é irresistível! Uma profusão de brilhos, frufrus, filós, princesinhas que despertam sorrisos, delicadeza, indulgência . 

A seção de meninos é sóbria, menor, menos colorida. Camisetas, calças, bermudões, roupas práticas. Privilegiam o conforto, convidam à liberdade, à ação. 

No setor de brinquedos para meninas, imperam as fadinhas, bonequinhas, pratinhos, casinhas, coisinhas para se enfeitar, incontáveis tons rosinha. 

Na área dos meninos: jogos variados, bonecos de montar, super-heróis, armas, carros, engrenagens, cores neutras predominam. Ação, competição, destreza, poder. 

As meninas, muitas vezes, se entendiam de faceirices e brilhos. Querem roupas confortáveis, brinquedos, tênis de menino, que são mais resistentes, mais duráveis. 

Os meninos muitas vezes gostam de brilhos, corações, enfeites, cor-de-rosa, mas são cortados pelos pais, em sussurro apressado, que não admite resposta: "Isso é coisa de menina". 

Emular a classe superior é compreensível. Mulher pode usar calças, terninhos. Mas homem não usa saia. Imitar o inferior é proibido, a não ser no carnaval, como deboche. 

No entanto, homens sempre se enfeitaram. Fotos antigas mostram perucas de cachos portentosos, caras empoadas, malhas colantes, botinhas de pelica, punhos rendados. E cocares, corpos pintados, brincos, colares. Tatuagens e piercings. Superman usa calçola vermelha por cima da malha justa, blusa colada, capa dramática. Sobriedade não é, nunca foi, inerente à masculinidade. 

Meninos e meninas, bem pequenos, antes que os programemos, calçam os sapatos do pai ou os de salto da mãe, indiferentemente. Os dois querem pintar as unhas, por presilhas nos cabelos. Os dois gostam de dormir com bichinhos de pelúcia, levá-los no colo, brincar com eles. 

Do mesmo jeito, as meninas correm e viram cambalhota e patinam, e gostam de competir. Mas nós ensinamos a elas que seu sucesso será medido pelo amor e aprovação alheia. Assim fica difícil que ela se torne uma pessoa emocionalmente independente, capaz de lutar por mudanças, capaz de fazer uma oposição séria, enfrentar polêmicas, o que implica conflito e exige resistência. 

Agências de propaganda, comércio, mídia, toda a sociedade trabalha intensamente nesse sentido. No mundo da ficção, é a mesma coisa. Personagens femininas em filmes para crianças são minoria. Minoria bem inexpressiva, embora elas sejam metade da humanidade: nos filmes, teatro, histórias em quadrinhos, para cada quatro ou cinco meninos, aparece uma menina - na melhor das hipóteses. Como protagonistas, a proporção é pior ainda. 

No comércio, bonequinhas com medidas físicas distorcidas por fetiches ou perversões de quem as cria, levam as crianças a sonhar com padrões de beleza inalcançáveis: "Pernas que não acabam", clichê em cinco de cada seis descrições modernas da mulher atraente. "Pernas que não acabam"! Que tanto medo eles tem do ângulo em que as pernas terminam! Criam fantasias de mulher-flamingo, pernas longas e finas ligadas diretamente a um peito massivo. Muitas mulheres, no empenho de agradar a todo custo, estufam as partes onde as querem gordas, apesar do risco das cirurgias, do desconforto de ter bolsas de plástico costuradas dentro do corpo, com prazo de validade, ao mesmo tempo em que se submetem a dietas radicais para ficar magras onde as querem magras. Que diferença há entre nós e as chinesas de pés deformados, costume antigo que, com razão, nos choca? Se há diferença, não é a nosso favor. 

Aqui não vai nenhuma critica a quem recorre a qualquer recurso para se sentir bem consigo mesmo. Nem me excluo disso. Cada um sabe o grau de sofrimento que o leva a pagar qualquer preço na busca de uma imagem que o faça sentir-se adequado, aceito. O que quero comentar é a cultura que nos leva a isso. 

Preparamos mal nossas crianças, e começamos muito cedo, como se não bastassem a carga cultural, a memória genética. E o processo é consistente, nos acompanha vida afora. As revistas femininas, por exemplo, aquela baboseira de sempre, como ficar bonita, como conquistar seu homem. A "mão invisível do mercado" (nem tão invisível assim) também atua dessa forma, com uma pressão irresistível que define as normas, a moda, empurrando meninos e meninas para a repetição de padrões e valores que sabotam boa parte de sua personalidade. 

Outro dia, saí para comprar um vestido para ir a um casamento. Percorri um shopping de pé a ponta: todas as vitrines de lojas femininas exibiam vestidos muito curtos, muito justos, muito decotados. Vestidos feitos para expor o máximo possível do corpo, como se exibe um produto, uma mercadoria. Roupas que desumanizam, apelam para sensações básicas e afastam a possibilidade de um relacionamento normal, entre pessoas. 

Vestidos deselegantes porque obrigam a pessoa a estar sempre se ajeitando, decote pra cima, saia que insiste em subir, para baixo. Para completar o pacote, vestidos de festa pedem sapatos altos. É raro ver uma mulher que ande com equilíbrio e segurança em cima de saltos fininhos e muito altos. Mesmo modelos experientes, no curto espaço da passarela, sem buracos ou pedras de calçamento, caem com frequência, torcem os tornozelos. E os joanetes e a dor nos pés que resultam disso. Uma moda meio bárbara! 

Nesse casamento a que fui, as madrinhas, seis jovens com vestidos e sapatos idênticos, como é o costume aqui, caminharam, uma após outra, pelo corredor central da igreja, precedendo a noiva. Esses momentos, com as flores, a música, costumam ser bonitos, mas causa desconforto ver as jovens transformadas em seres claudicantes, os rostos tensos, concentrados no esforço de se equilibrar nos saltos. 

Que diferença dos homens! Confortáveis, elegantes, mesmo os muito obesos ou mal construídos, considerando os padrões davincianos. Ternos não exibem o corpo como mercadoria. Ao contrário, favorecem a auto-confiança, realçam a pessoa, seu jeito de ser, seu charme. 

E assim vamos, consumindo alegremente o que o mercado nos oferece; perpetuando, sem questionar, a sociedade de castas, em que vivemos. 


Texto de Marília Mota Silva, no Digestivo Cultural

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