Tenho visto o tempo passar como um monge contemplando a estranha luminosidade do deserto. Por vezes, deliro. Durante décadas, como todo mundo, eu me considerei intemporal. Aos poucos, essa duvidosa noção foi se esfarelando com o surgimento de dores, de novos sentimentos e de lembranças de amigos ou conhecidos que já se foram. Perdi meu pai, meus dois melhores amigos de infância – meus primos Carlos Henrique e Heron – meu melhor amigo intelectual – Décio Freitas – e algumas pessoas que muito fizeram por mim como os maristas Mainar Longhi e Norberto Rauch. Neste semana, partiu, de parada cardíaca, aos 80 anos de idade, o Irmão Armando, marista que foi diretor da Faculdade de Educação da PUCRS.
Eu estava lendo “O silêncio do tempo”, delicioso livro de crônicas de Liberato Vieira da Cunha, quando soube da morte do Irmão Armando. A nostalgia de Liberato já circulava em meu sangue despertando alegrias perdidas e odores inesquecíveis. Irmão Armando era do bem. Não o conheci profundamente. Mas sempre que o encontrava pelas alamedas da PUCRS tinha dele uma ótima impressão. Parecia ter vindo ao mundo para dizer alguma coisa gentil aos seus interlocutores. Conversei com vários colegas e todos confirmaram essa leitura. Fiquei pensando na passagem do tempo e na permanência transitória neste mundo. Tudo se esvai.
Só fica o que jamais foi sólido: o imaginário.
O imaginário é esse acaso que se tornou significativo. De repente, sou assaltado por imagens longínquas, risos de crianças, águas salpicadas numa lagoa, meninos correndo e a certeza de que naquele momento o tempo esteve parado. Não duvido de que o tempo seja como aquela luz verde do outro lado da baía que aparece num famoso livro de Fitzgerald. Tenho em comum com Liberato o gosto pela nostalgia, a memória minuciosa para acontecimentos da infância e bastante deficiente para rostos contemplados ainda na semana passada e a paixão por Fitzgerald e outros da sua geração.
A morte talvez seja a luz verde que deixou, enfim, de brilhar.
Que posso saber? Que posso dizer? Sou apenas um guri de cabelos grisalhos tentando entender a beleza dos pássaros e a efemeridade dos gols, dos beijos e das ambições. Tudo é fugaz. Salvo a fugacidade. Essa é perpétua. Aprendi ao longo dos anos que se pode aprender todo dia. Meus alunos faziam um trabalho em dupla. Fragmentos de suas palavras me chegavam aos ouvidos como uma música distante. Havia tanta inteligência em algumas das observações daqueles jovens de 19 anos que me comovi. Creio que me comovi com as crônicas do Liberato, a morte do Irmão Armando e duas meninas analisando o autor com a maturidade precoce dos que percebem a luz verde em toda a sua intensidade. Uma delas disse: “Ele é ponderado”.
A outra pensou, franziu a testa e precisou: “Equilibrado”.
Vejo a luz verde piscar como um farol. Certos dias, ela parece mais intensa. Em outros, fica encoberta por uma névoa de ausência de sentido. Duas coisas me arrancam do torpor quando a luz verde se embaça: os livros e a música.
Uma crônica é um vestígio dessa luz na solidão.
Reprodução do blog do Juremir Machado da Silva.
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