Em setembro, completaram-se 40 anos do golpe militar que derrubou no Chile o presidente socialista Salvador Allende. Interessante constatar como o 11 de setembro de 1973 --que dividiu o país em dois, temporal e simbolicamente-- foi lá celebrado.
Nunca antes a data tinha sido objeto de tantos eventos: programas de TV, livros, recitais, exposições, passeatas, missas, ações judiciais, ao longo e largo do país. O que está acontecendo? Uma resposta pode ser o ano eleitoral em curso no Chile, que confronta candidatas presidenciais com ideários exatamente opostos: Michelle Bachelet, socialista, e Evelyn Matthei, da direita, ambas filhas de generais, a primeira com o pai assassinado por não aderir ao golpe, a outra com um pai que integrou a junta militar golpista.
Mas esse dado não explica tudo: já tinham ocorrido aniversários do golpe em época eleitoral e não provocaram a ressonância deste.
O que tanto se rememora? Nos eventos, proliferaram atos de "perdão" às vítimas; documentários revelaram detalhes das atrocidades da ditadura; peças de teatro preocuparam-se em restituir a dignidade dos humilhados; debates buscaram a genealogia do mal; palestras revisitaram o socialismo; inúmeras foram as homenagens a Allende, nenhuma a Pinochet. Foi Pinochet esquecido? Não. Emergiu potente, mas para encarnar, como nunca antes, o contraexemplo, aquilo que nunca mais deveria acontecer.
Uma maldição para a direita e sua candidata presidencial, obrigadas a emitir sinais de mudanças: sua sobrevivência passaria por "despinochetizar-se", o que significaria colaborar na erradicação de entulhos autoritários como a Constituição de 1980, além de incluir em seu ideário, sem constrangimentos, a democracia e o respeito aos direitos humanos como valores permanentes.
E Allende? Allende, claro, sempre fora recordado com afeto pela esquerda, mas desta vez notou-se sua irrupção num espaço público mais amplo, aparecendo com vigor e dignidade. Reaparece cheio de ideias para dar, pautando até a atual agenda do mundo popular: a construção de uma sociedade mais justa e plural, mesmo tendo o socialismo desaparecido do vocabulário político.
As massas obstinadas que concorreram aos mil eventos foram as que Allende sempre amou: os trabalhadores, os estudantes, os intelectuais, as minorias, com participação quiçá hegemônica das novas gerações. Não fosse pelas lembranças oficiais no passado recente, poder-se-ia gritar ao vento que Allende, como uma fênix, renascera literalmente das cinzas, contaminando com seu discurso subversivo as novas gerações que teimam em repetir publicamente valores caros a ele: rebelar-se contra toda exploração, hoje associada ao neoliberalismo imposto pela ditadura.
Todo Chile pôde ouvir em setembro, agora pela boca de jovens, que "os processos sociais não se detêm nem com o crime nem com a força" e que "novamente se abrirão as grandes avenidas por onde passará o homem livre para construir uma sociedade melhor". Para remate, verdadeira penitência para a direita, ressoaria o eco queimante há muito cantado pelas massas politizadas, infladas de superioridade moral: "Se siente, se siente, Allende está presente".
Texto de Horácio Guriérrez, publicado na Folha de São Paulo.
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