A esquerda luta contra as desigualdades; a direita pretende apenas perpetuá-las. Podem passar milênios sobre a história humana. Mas esse é o clichê que fica.
Injusto. Nos últimos tempos, por motivos acadêmicos, tenho passado os dias com o conservador Benjamin Disraeli (1804""1881).
Sim, na longa galeria de primeiros-ministros britânicos, Disraeli perde em popularidade para gigantes como Churchill ou até para o contemporâneo Gladstone. Quando muito, Disraeli é lembrado como romancista (mediano) e um dos principais confidentes da rainha Vitória.
Mas Disraeli foi mais que tudo isso: ele simplesmente evitou que a Inglaterra cumprisse a revolução profetizada por Marx. A forma como o fez desafia todos os clichês ideológicos.
Aliás, a referência a Marx não é por acaso. Porque ambos, habitando a mesma cidade, contemplaram o mesmo problema: o fosso crescente entre ricos e pobres; a concentração de riqueza (e de poder) na mão de uns poucos --e depois uma longa legião de miseráveis que a Revolução Industrial produzia nas cidades.
Mas existe uma diferença: para Marx, o proletariado estava pronto para a revolução porque nada tinha a perder. Para Disraeli, o proletariado só não estaria pronto para a revolução se tivesse alguma coisa a ganhar.
Um pouco de história: em 1832, quando o Parlamento aprovou uma importante reforma eleitoral (a Reform Bill, promovida pelo partido Whig), foi concedido à classe média o direito de voto.
Disraeli reagiu. Por temer que o direito de voto à classe média pusesse em causa os sucessos eleitorais futuros do seu próprio partido conservador, aliado tradicional da aristocracia terratenente?
Sem dúvida --o calculismo partidário não nasceu hoje. Mas o problema, para Disraeli, não era apenas partidário, era nacional. Ou, dito de outra forma, o que seria da Inglaterra se as classes trabalhadoras fossem deixadas para trás? Não seria preferível conceder também o direito de voto às classes trabalhadoras?
Uma pergunta dessas, entre os conservadores, era simplesmente blasfêmia: imaginar que um trabalhador braçal pudesse votar só poderia ser piada.
Pior ainda: como o sr. Karl Marx ensinava, alargar os direitos políticos ao proletariado era convidar para dentro de casa quem a desejava destruir.
A resposta de Disraeli foi simples e crucial: ninguém deseja destruir uma casa que também sente como sua.
Dito e feito: em 1867, Disraeli aprovou o Reform Act, que concedeu o direito de voto aos trabalhadores urbanos. A historiadora Gertrude Himmelfarb explica a importância do gesto em uma única frase: foi nesse ano que a democracia plena nasceu no Reino Unido.
Mas Disraeli não ficou por aqui: como lembra Peter Viereck em estudo que também lhe é dedicado ("Conservative Thinkers", um primor de concisão e erudição), Disraeli acabaria mais tarde por legalizar também os sindicatos; e o direito à greve; e o direito à constituição de piquetes pacíficos; para além de ter aprovado mil outras leis laborais que extinguiram, um por um, todos os focos potencialmente revolucionários no país.
Como explicar tudo isso? Como explicar, no fundo, que tivesse sido um conservador a depositar uma fé tão otimista nos marginais do sistema?
Opinião pessoal: porque Disraeli, apesar de todos os sucessos literários e políticos, sempre se sentiu um marginal na sociedade inglesa do século 19. Aos olhos dos seus pares, ele era o eterno "estrangeiro", o eterno "exótico", o eterno "judeu", apesar do batismo na fé cristã.
E não existe nada mais insultuoso para um "outsider" do que a ideia paternalista, seja de esquerda ou de direita, de que todos os "outsiders" são por definição selvagens e revolucionários.
Não são, disse Disraeli: eles também podem ser cavalheiros se forem tratados como cavalheiros. E só assim, tratados como cavalheiros, eles estarão dispostos a preservar, e não a destruir, a constituição de que fazem parte.
Foi essa a lição magistral que salvou a Inglaterra da revolução --e, claro, o partido conservador do esquecimento.
Que essa lição seja ignorada pela esquerda, não admira. Que ela seja ignorada pela direita, eis uma fatalidade que já causa maior espanto.
Texto de João Pereira Coutinho, na Folha de São Paulo.
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