domingo, 20 de outubro de 2013

Líbia vive "normalidade caótica" sob domínio de milícias


"A Líbia não é um Estado, não é um presidente, não é um governo. A Líbia são milícias que tomam decisões por conta própria. Mas o primeiro-ministro quase não consegue proteger a si próprio!" Ainda ressoavam estas palavras do jornalista Sami Zaptia na quinta-feira (17) na redação do jornal "Libya Herald" quando o citado primeiro-ministro, Ali Zeidan, era sequestrado em sua cama no luxuoso hotel Corinthia em Trípoli, por um comando armado. Horas depois, outro comando o resgatava. Não se sabe se os milicianos queriam obrigá-lo a renunciar, como parte das vendetas políticas no interior do governo. Ou se pretendiam trocá-lo pelo terrorista da Al Qaeda Abu Anas al Libi, capturado há uma semana na capital líbia em uma operação dirigida pelos EUA. Não se sabe e talvez nunca se saiba.
Como nunca se saberá quem está por trás dos atentados, assassinatos e outros acontecimentos pavorosos ou extraordinários que sacodem esta potência petrolífera desde a derrubada de Muammar Gaddafi em 2011. Bem-vindos à nova Líbia. Um caos, sim. Mas um caos organizado. Talvez isso de funcionar sem governo seja outra herança da ex-metrópole italiana, como a pizza e o bom café.
A agitação reina em Trípoli. A capital recuperou o ritmo perdido durante os oito meses de guerra, entre fevereiro e outubro de 2011, que pôs fim a 42 anos de ditadura. Brotam cafés com nomes como Versalhes, Veranda, Roma ou Morganti. A BMW inaugura uma luxuosa concessionária. A Pronovias abre em Gargaresh, o bairro chique. Na central rua Omar Mukhtar, as velhas lojas de roupas colocam nas portas manequins masculinos com jeans desses que deixam meio traseiro de fora. E o bazar é novamente uma agitação de brilhantes tecidos da Índia, joias de ouro e divisas do mercado negro.
A cidade é um congestionamento permanente. Aonde vão todos às 11 da manhã? Outro mistério líbio. "Aqui as pessoas não trabalham", afirma o farmacêutico Ahmed. O desemprego chega a 33%, mas o trabalho é feito pelos imigrantes: tunisianos e marroquinos estão na hotelaria e serviços, os egípcios na agricultura e na pesca, os subsaarianos e bengalis, na construção. A metade dos adultos líbios são funcionários públicos. E o restante se dedica ao comércio ou a negócios familiares. A questão é que há dinheiro. Muito circulante. Ninguém confia nos bancos, não há cartões de crédito e tudo se paga em espécie.
Isto também é a nova Líbia. E as meninas que ao meio-dia saem da aula correndo com seus uniformes azuis ou pretos, cobertas com um hijab branco. Os gays que se reúnem à noite sob as pontes da autoestrada, perto da Praça dos Mártires. Os croissants untados com manteiga e mel e recheados de frutos secos. As emissoras de rock e rap que abriram caminho nos últimos meses. Ou as novas publicações que enchem as bancas.
"Há um apetite insaciável por saber, aprender idiomas, algo que Gaddafi proibiu em sua época", comenta Sami Zaptia, codiretor do "Libya Herald", um digno diário digital em inglês feito com paixão por dez jovens que aprendem o ofício na prática e que já conta com um milhão de visitas. "A Líbia não é o Iraque, não é o Afeganistão, não é a Síria. Há muitos desafios e problemas porque foi um processo muito traumático. A democracia é uma cultura, e a maioria dos líbios não conheceu outra coisa além de Gaddafi. A ditadura é horrível, mas oferece ordem e estabilidade. Agora estamos confusos, e temos o direito de estar."
Do ditador só restam as caricaturas que enchem as paredes da cidade. E os vestígios de seu gigantesco quartel-general em Bab Al Azizia, bombardeado pela Otan. E um legado de destruição que vai demorar muito tempo para ser superado.
As autoridades contribuem em boa medida para a confusão de que fala Zaptia. O Congresso Geral da Nação, eleito nas urnas em julho do ano passado, não consegue formar a comissão encarregada de redigir a nova Constituição. Os bloqueios entre a Irmandade Muçulmana e os liberais são constantes. "Bem, mas ontem concordaram em proibir a pornografia na Internet, que, como todo mundo sabe, é o problema número um da Líbia", ironiza Ali, professor de inglês. "Estamos em um limbo perigoso. Em política, se você não avança, retrocede."
À entrada do Congresso chegam diariamente centenas de pessoas que não sabem a quem recorrer para resolver seus problemas. Como Muna, que aborda chorosa a todos os que saem ou entram com ares de autoridade para que a ajudem a encontrar seu filho, sequestrado há três dias. "Fizemos a revolução porque queríamos um país moderno. Mas há os que hoje fazem o mesmo que Gaddafi. São uns ladrões", comenta um homem. "O orçamento do governo líbio é maior que o do Egito. Eles são 85 milhões e nós apenas 6 milhões. O que estão fazendo?"
O governo provisório de Ali Zeidan, um liberal bem-intencionado mas sem margem de manobra, se vê ultrapassado pela magnitude dos desafios. Tudo está por fazer. E tudo é tudo. Gaddafi deixou um país sem instituições e corroído pela corrupção. Ao contrário do que pretendia fazer crer a propaganda, a Líbia tem carências infinitas em educação, saúde, habitação, infraestrutura, telecomunicações...
O problema mais grave, entretanto, é a segurança, nas mãos de centenas de milícias formadas por civis para combater as tropas de Gaddafi e hoje armadas até os dentes. O governo pretende somá-las às novas forças de segurança. Para tanto, criou dois corpos intermediários: o chamado Escudo Líbio, que reúne milícias que depois serão incorporadas ao exército, e o Comitê Supremo de Segurança, cujos membros acabarão na polícia. Mas muitas brigadas (qatibas) continuam funcionando por conta própria. Não conseguem confiar nas autoridades. Nem as autoridades conseguem confiar nelas. O poder agora emana da Kalashnikov.
E desse poder dá ideia a situação de Saif al Islam, filho e herdeiro de Gaddafi, detido em Zintan por uma milícia que se nega a entregá-lo ao governo. Também são as qatibas que controlam as prisões, onde, segundo organizações humanitárias, impera a tortura. "A polícia não funciona. Somos nós que perseguimos o crime, roubo de carros, tráfico de drogas, venda de álcool... e também detemos gaddafistas", explica Murad Hamza, que aos 30 anos comanda a Suq al Yumaa, uma das mais poderosas de Trípoli. Quase a metade de seus 500 homens regressaram à vida civil. Os demais esperam para se integrar à unidade de inteligência da polícia. "Temos boa relação com outras qatibas. As islamitas são as que mais lutaram contra Gaddafi, mas nunca toleraremos que se imponham. Se quiserem ir à Síria combater, que Alá os acompanhe." Hamza estudou economia, mas se vê à vontade com o uniforme preto e a pistola no cinto. Abre uma enorme caixa-forte para mostrar alg umas das apreensões: drogas sintéticas, documentos, armas brancas. Revira e revira e grita para seu subalterno: "Quem levou a garrafa de uísque?"

Gadamés, o oásis esquecido

A 600 quilômetros a sudoeste da confusão, do trânsito enlouquecido e da agressividade de Trípoli, Gadamés se espreguiça no meio do silêncio. Esse oásis berbere, colado às fronteiras da Tunísia e da Argélia, foi um dos centros mais importantes na rota das caravanas que cruzavam o Saara desde a época romana.
Nenhum turista percorre o maravilhoso centro antigo, um entramado de labirintos de barro, Patrimônio da Humanidade da Unesco. O pó cobre as estantes das poucas lojas de artesanato em couro que continuam abertas. Vários restaurantes e dois dos três hotéis fecharam. A revolução atingiu esta população cuidada por Gaddafi. Não por acaso, o ditador construiu em 1973 uma nova cidade para realojar os 10 mil moradores que viviam certamente em condições insalubres. Durante a guerra, o oásis foi sitiado pelas forças rebeldes e finalmente caiu, depois de Trípoli. Mas ninguém fala de política. "Gaddafi nos beneficiou, mas não gostávamos de sua ideologia", limita-se a comentar Tahir, professor e guia turístico inativo há dois anos.
Quem trabalha são os subsaarianos, na reconstrução do centro antigo, onde vivem quase reclusos. São de Mali, Chade ou Níger, e Gadamés é para eles uma escala no caminho para a Europa. Cruzam a pé pelo deserto, através de extensas fronteiras dominadas por traficantes de armas, imigrantes e drogas. Justamente da Líbia veio o comando da Al Qaeda que assaltou em solo argelino a usina de gás de In Amenas em janeiro passado.
Apoiado na cerca do velho cemitério, Mohamed sonha com um próspero futuro para sua Gadamés natal, para onde volta nas férias. Saiu para estudar engenharia aeronáutica no Canadá e, como boa parte dos estudantes bolsistas, não quis voltar ao manicômio de Gaddafi. "Gadamés tem condições magníficas para a navegação aérea. Por isso e por sua localização, poderíamos nos transformar em um centro nevrálgico nas comunicações para a África." É uma ideia quase poética: seria recuperar no século 21 o papel que teve no comércio africano desde tempos imemoriais.


Benghazi, refém do desânimo


"Bem-vindos ao berço da revolução." Um cartaz no aeroporto da capital da região oriental de Cirenaica lembra o protagonismo da segunda cidade da Líbia na revolução. Mas benghazis esfriam a recepção. "Tudo está ruim", diz o empresário Fahmi Igwian, enquanto seu velho Mercedes percorre ruas e bairros cheios de lixo.
Nessa mesma manhã do início de outubro, um coronel da aviação foi morto a tiros em uma emboscada. Levava seu filho para o colégio. O menino de oito anos também morreu quando o carro se chocou. São mais de 60 oficiais assassinados nas últimas semanas, a tiros ou com bombas. "Muitos não tinham nada a ver com a repressão. Um dos últimos era especialista em explosivos", prossegue Fahmi. "Eu às oito da noite me tranco em casa. Limito minha saídas e resolvo as coisas por telefone. Tenho medo."
E quem mata os militares? Outro capítulo para anotar na lista dos grandes mistérios da Líbia. E quem pôs a bomba no edifício dos tribunais em setembro? E a que destruiu nesse mesmo mês as dependências do Ministério das Relações Exteriores em Benghazi? E quem matou o embaixador americano Chris Stevens em setembro do ano passado? Oficialmente não há resposta. Em privado, e sempre pedindo o anonimato, especialistas e sobretudo chefes de milícias - inclusive alguns salafistas que se afastam da violência - indicam as células jihadistas que se estabeleceram nas montanhas Verdes perto de Darna, a leste de Benghazi. Argelinos e tunisianos uniram-se aos extremistas locais. "O mais importante que temos a fazer é nos protegermos deles. Mas o Estado não faz nada. E isso aumenta a sensação de abandono de Benghazi."
Para Yalal al Arasi, a inatividade do governo tem outra explicação. "Não metem a mão porque lhes interessa que haja instabilidade em nossa região." Yalal combateu em uma milícia de Benghazi e agora apoia o movimento federalista que emerge no leste. A antiga rivalidade que sempre existiu com Trípoli, incentivada por Gaddafi, reviveu depois do triunfo da revolução. "Não queremos a independência, mas um sistema federal como a Alemanha e os EUA. A nossa região só deram 60 lugares no novo Congresso, contra os cem de Tripolitânia. Trípoli tem tudo: ministérios, embaixadas, empresas. Distribui o dinheiro como quer. E daqui de Cirenaica saem 75% do cru que se exporta."
Nos últimos meses, os federalistas bloquearam o acesso do petróleo aos portos e refinarias. Eles e outros setores com diferentes agravos. A produção de cru, que em 2012 recuperou o ritmo anterior à guerra, de 1,6 milhão de barris diários, chegou a despencar 90%. Agora as autoridades dizem ter aumentado para 700 mil barris-dia. O prejuízo econômico para um Estado que não cobra impostos e que tem no petróleo a metade de seu PIB e quase 100% das exportações é enorme.
Exceto pelo petróleo, a Líbia não produz nada. Importa 80% dos alimentos que consome, 60% da gasolina, que é vendida a preços subvencionados e custa menos que água: 0,09 euro por litro, por isso os líbios não saem do carro. O FMI recomendou à Líbia que diversifique sua economia: que desenvolva sua capacidade de refino, o setor petroquímico e o tecido industrial. Mas a burocracia, a carência de um sistema bancário eficaz e algumas leis em trâmite, como a que impõe o banco islâmico (que proíbe os juros, por exemplo) ou a que limita o investimento estrangeiro semeiam o desconcerto.
"Eu prevejo uma segunda revolução. As pessoas estão contrariadas: os jovens, os pobres... Todos estamos fartos desse sistema sem controle." Zuair al Barassi, um ativo jornalista e apresentador de rádio, não esconde sua decepção e lamenta o avanço dos islamitas. "Ontem atacaram a universidade em Darna. No leste e no sul têm bases de poder. Aqui não os queremos." É verdade. Em setembro, depois do assassinato do embaixador Stevens, a população de Benghazi expulsou a brigada de Ansar el Sharía e queimou sua sede. Mas estão voltando, aproveitando-se do vazio de poder. "Por enquanto só temos as forças especiais do Ministério da Defesa." Zuair fuma o enésimo cigarro enquanto relata uma nova ameaça de morte que recebeu. "Sinto dizê-lo, mas não suporto mais esta cidade. Quero ir embora. Quero que meu filho tenha uma vida normal."

Misrata, a cidade-Estado

Já não retumbam os mísseis Grad com que os gaddafistas martelaram Misrata durante quatro meses. Agora essas explosões surdas que soam toda noite são os petardos e fogos de artifício que acompanham os casamentos. Já são 400 em um mês. Se em Trípoli ou Benghazi há surtos de impaciência ou desânimo, em Misrata reina a felicidade. "Finalmente estamos vivendo em paz", exclama o comerciante Yumaa, como todo mundo nessa população laboriosa e rebelde. A chamada Cidade Mártir, que resistiu heroicamente a um assédio brutal, perdeu mil de seus jovens e foi parcialmente destruída, transformou-se em uma cidade-Estado vibrante e orgulhosa.
As cicatrizes são visíveis. A fantasmagórica Torre de Seguros, guarida dos franco-atiradores, preside esburacada a praça Midan Al Nasri. Ali ficava na época o belo bairro histórico italiano, destruído por Gaddafi. Em seu lugar fez aquela praça horrenda e colocou um enorme relógio que nunca alguém se incomodou em acertar a hora.
Muitos edifícios da rua Trípoli continuam calcinados. Mas em seus baixos abriram reluzentes lojas de móveis, artigos esportivos ou roupas. Se os líbios são comerciantes natos, os misratis superam seus compatriotas em espírito empreendedor. O aeroporto, destruído durante a guerra, tem agora voos internacionais para a Turquia, Jordânia, Marrocos e Tunísia. O porto é o mais importante da Líbia, talvez por ser o único que escapa à lei gaddafista, ainda em vigor, que os obriga a funcionar só oito horas.
Misrata é o laboratório perfeito para estudar as redes de comércio sul-sul. Yumaa importa sapatos da China e tecidos da Turquia, que depois vende com lucro para comerciantes do resto da África. E Misrata também é o lugar mais seguro da Líbia: 230 milícias se revezam nas tarefas de vigilância. Pela estrada de Trípoli, um arco, justamente onde esteve a frente de Dawiniya, marca a entrada para esta espécie de república independente, que conta com seu próprio sistema alfandegário. Por terra, mar e ar revisam os documentos e os passaportes, às vezes com zelo excessivo. "É um problema para o comércio, que sofreu 60% de queda. Muitos dos meus clientes, do Sudão e outros lugares da África, não veem mais por temor dos controles. Agora vão a Dubai", explica Yumaa. "Mas para mim está bem assim. A segurança é o principal."
"Sabemos nos organizar. Isso é tudo", comenta Mohamed Salabi, que caminha com uma bengala porque tem uma bala alojada nas costas. "Em Benghazi só sabem chorar, muito blablablá, mas não fazem nada." "O problema é que Gaddafi era nosso fator unificador", acrescenta. "Agora não há Gaddafi e buscamos algo contra o que nos opormos. Jovens e velhos temos aspirações diferentes. E laicos e islamitas. E líbios do exílio, ocidentalizados e melhor formados, e os que ficaram... Temos que buscar nossa própria identidade. E isso levará tempo."

Reportagem de Maite Rico, para o El País, reproduzida no UOL. Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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