sábado, 24 de janeiro de 2015

Sucesso a qualquer preço

Vou-me convencendo de que torcer nunca é bom negócio. A Copa do Mundo derrotou minhas últimas certezas, e não serei eu quem se envolverá agora com a disputa pelo Oscar.
De todo modo, já saí perdendo. Dos filmes a que assisti, meu favorito era "O Abutre", de Dan Gilroy, com um Jake Gyllenhaal que seria candidatíssimo ao prêmio de melhor ator —se o tivessem indicado.
O máximo de insensibilidade moral se alia a uma tocante ingenuidade na personagem de Lou Bloom, um cinegrafista especializado em registrar acidentes e agonias para um noticiário televisivo sensacionalista.
Gyllenhall consegue despertar, ao mesmo tempo, simpatia e repulsa no espectador a cada momento do filme.
Por um lado, o cinegrafista expressa um puro desejo de aprender, sofrendo a rejeição de "abutres" mais experientes na tarefa de farejar qualquer indício de crime ou de tragédia.
Por outro, ele funciona como um autômato —um pouco como o personagem de Peter Sellers em "Muito Além do Jardim" (1979)—, aplicando com muito método, e nenhuma consciência, os preceitos que absorveu num site de aconselhamento empresarial.
Como contratar um ajudante? Como negociar preços com seu fornecedor? Como avaliar propostas de negócio apresentadas por um concorrente? Lou Bloom age de modo perfeito —se se entender o sucesso como medida da perfeição— em cada um desses desafios.
O grande feito de "O Abutre" é combinar muita emoção hollywoodiana —com belas perseguições de carro e altos riscos de tiroteio— com uma dura crítica, não diria nem do jornalismo sensacionalista, mas da ideia de ascensão profissional.
Sucesso a qualquer preço: provavelmente esse é o tema básico de nove entre dez filmes de Hollywood. Em "O Abutre", predomina o desencanto: vencer profissionalmente exige o sacrifício de qualquer valor.
Em "Whiplash", outro bom filme em cartaz, a moral parece ser oposta. O verdadeiro valor do aspirante a baterista vivido por Miles Teller não se medirá pelo seu talento ou por sua sensibilidade (ainda que isso pudesse ser, em tese, importante para um músico de jazz).
Entregue ao regime sádico de seu professor (um inesquecível J. K. Simmons), o jovem músico será testado, acima de tudo, na pura capacidade de sobrevivência psicológica. O filme traz muita diversão para quem gosta de ver sangue correr —em especial quando isso não se dá literalmente.
A graça de tudo aumenta na medida em que somos incapazes, afinal, de perceber qualquer coisa errada na performance dos alunos —cada vez mais aterrorizados— do incontentável maestro.
Ele esbraveja, tortura, espezinha, estapeia: o baterista não está no andamento certo. Como conseguiríamos saber? O garoto tenta novamente, o martírio dura horas, nada percebemos de concreto —a não ser, naturalmente, a disposição do aluno para o sacrifício, para a resistência, para o ascetismo.
Na ascese está a chave da vitória. Mas não se trata de obediência, de submissão. Para que tudo fique mesmo empolgante, o oprimido terá de vingar-se. Num concerto decisivo, dá-se a luta implacável entre professor e aluno; espetacularmente filmada, e com uma ainda mais espetacular trilha sonora, vale o filme todo.
Impressionou-me menos o terceiro filme dessa leva de produções sobre o sucesso e fracasso. "Birdman", de Alejandro González Iñarritu, complica-se, e parece não saber a hora de terminar, conforme alterna um plano realista com outro mais alegórico.
Seja como for, novamente o que se vê é o drama de quem entrega toda a sua vida na expectativa de uma realização profissional consagradora.
É comum citar o clássico de Max Weber, "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo", para apontar a suposta incompatibilidade da nossa cultura católica (indígena? africana?) com a busca operosa do lucro.
Um aspecto menos lembrado do livro, todavia, é o que diz respeito ao conceito protestante de "vocação". Para Weber, criou-se um evento novo na cultura ocidental quando Lutero formulou a ideia de que cumprir bem um dever profissional equivale a servir a Deus.
O método, a ascese, a intolerância para com relaxamentos nessa tarefa viriam a ser introduzidos pelo calvinismo.
Como fazer desse tema uma matéria de entretenimento? Este é um dos segredos de Hollywood, em seus inúmeros filmes de luta e de sucesso. "O Abutre" chega perto de desmascarar essa "ética" —mas, não sei se por isso mesmo, ficou fora da disputa.


Texto de Marcelo Coelho na Folha de São Paulo

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