sábado, 31 de janeiro de 2015

Eles lutavam por todos nós

Ninguém está falando sobre isso, mas 23 ativistas estão sendo processados por associação criminosa armada --embora não haja arma, nem crime, nem associação. Além da ausência de antecedentes criminais, os ativistas têm em comum apenas o fato de terem participado das manifestações de junho e, no ano seguinte, dos protestos contra a Copa. Só. A maioria se conheceu na cadeia.
Não se sabe qual o critério escolhido para prendê-los, já que milhões de pessoas protestaram entre junho de 2013 e junho de 2014 (dentre as quais eu), mas o critério parece ter sido o fato de serem, em sua maioria, professores.
Depois de meses de escuta telefônica em que até os advogados de defesa foram grampeados (isso, sim, é crime, senhor juiz) nada pode ser dito, de fato, contra os manifestantes.
Em um dos telefonemas, Camila Jourdan, professora da UERJ, pergunta se o amigo vai levar os "livros" e as "canetas". O código poderia ter passado desapercebido, mas a polícia fluminense, que anda vendo "Sherlock" demais na HBO, descobriu se tratar de uma mensagem cifrada. "Livros" seriam bombas e "canetas", armas.
Imediatamente após decriptar a intrincada linguagem anarquista, a polícia, sem mandado de busca e apreensão, invadiu e revistou a casa dos ativistas. Não encontrou nada.
Aliás, encontrou. Livros e canetas. Mas não só. As casas tinham uma quantidade suspeita de camisetas pretas. Em algumas, máscaras de gás e, em uma delas, encontraram uma garrafa de gasolina (aquele líquido usado para abastecer carros e geradores). Mesmo assim, sem flagrante, foram presos --para, algumas semanas depois, serem soltos.
A mesma sorte não teve o único preso que é analfabeto, Rafael Braga. Ele está preso até hoje por ter sido encontrado portando uma garrafa de desinfetante Pinho Sol. Mesmo soltos, os manifestantes tiveram seus direitos políticos cassados. Enquanto aguardam julgamento, não podem participar de nenhuma reunião pública nem abandonar sua comarca.
O julgamento ocorre nesta sexta (30) e, apesar de não terem cometido crime algum previsto no Código Penal, tudo indica que os manifestantes serão condenados pelo juiz Flávio Itabaiana. Notável reacionário que se orgulha de nunca ter absolvido alguém, Itabaiana tem em mãos um processo de 7.000 páginas.
O que é que o Itabaiana tem? Não tem torso de seda nem saia engomada --tampouco tem a lei a seu favor. A grande peça no tabuleiro de Itabaiana é a opinião pública. A mesma mídia que condenou as manifestações e que logo depois passou a festejá-las, voltou-se novamente contra elas quando da morte trágica do cinegrafista Santiago Andrade. (Não há qualquer ligação entre os 23 processados e a morte de Santiago.)
Graças ao investimento de parte da mídia que queria a reeleição de um governador, manifestar virou sinônimo de matar cinegrafistas e eis que o gigante adormeceu --a golpes de reportagens tendenciosas e manchetes repulsivas. Resultado: a polícia desceu o pau, a classe média aplaudiu e o Brasil voltou a ser aquele país sem revolta.
A muita gente interessa a calmaria: na calada da noite de Ano-Novo, aumentaram a passagem de ônibus em R$ 0,40. Se houve uma guerra, a máfia do ônibus saiu vitoriosa.
Vale tentar conscientizar de novo essa mesma opinião pública e lembrar que os 23 ativistas processados estavam lutando por nós. E querem continuar lutando --dando aulas, lendo livros, usando canetas. O aumento vertiginoso das passagens prova que a gente precisa deles, mais do que nunca.

Texto de Gregório Duvivier, publicado na Folha de São Paulo

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