Eu jamais serei a "esposinha", de codinome "mulher de fulano". Espinha dorsal de tábua de passar roupa, mãos sobrepostas com delicadeza nos joelhos, dentes à espera de bajular com largura qualquer besteira que seu homem diga. A facilitadora de um moço bem-sucedido: não complica, não engorda, não compete (principalmente!) e não esquece de colocar a camisa polo preta na mala. Vez ou outra é espertinha (afinal, é 2015 e pega mal nas festas ostentar um troféuzinho sem uma mísera centelha): a cada 12 dias ela replica uma piadota espirituosa, uma vez por bimestre se arrisca num duplo sentido, parece que foi vista sendo cínica no penúltimo Finados.
Mas não vou negar: por um bom e saliente osso firme de bacia quadrada, periga eu ajoelhar para catar meias do chão. Curto quando reclamo "da roupa de corrida guardada de volta na gaveta" e ele responde, quase num urro ogro "é cheiro de macho, pô!". Fica lá o shortinho suado, lançado sobre meus vestidos, manchando de testosterona o ar ensimesmado do closet. Acho ótimo.
Eu só sei fazer quatro pratos: frango grelhado, omelete, frango desfiado e ovos mexidos. Minhas unhas estão péssimas, porque até o final de fevereiro entrego dois seriados, dois longas metragens e um livro. Quem tem tempo de ostentar sobrancelhas depiladas, calcanhares macios e cabelos hidratados com um cérebro-martelo-24 horas e uma pastinha rosa transparente cheia de contas pra pagar? No entanto, vou te mandar um sincerão: continue bravo. Adoro homem sério. Continue me tratando um pouco seco no café da manhã: "eu acordo assim".
Leia o jornal na minha frente, não tem problema. Eu que pago a assinatura do jornal, eu que comprei essa poltrona de couro caríssima em que você está refestelado como um rei, eu que escrevo para o jornal. Mas, por obséquio, mantenha-se nessa postura de comandante absoluto do lar, lendo as notícias na minha frente e as descartando no chão, como se a uma mulher não importasse nada disso. É apenas um jogo e mais tarde usaremos isso a nosso favor.
Se bem que hoje não. Estou com a lombar abusada, estou com os axônios esfolados, escrevi para uns dez personagens e me explorei tanto para eles que sobrou pouco pra você. Perdão, mas prefiro isso a ser uma doce garota de glúteos enrijecidos por corredores de lojas. Prefiro isso a ser uma moçoila "puts, nunca soube direito o que fazer da vida", sempre disposta a ceder sua existência, uma vez que esperar pelo marido é o melhor que elas fazem de seu dia.
Prefiro essa pancinha desgraçada (talvez fruto de uma postura entregue ao computador, talvez resultado de uma queda de colágeno associada a uma compulsão desenfreada por doces a cada vez que a vida entedia demais) à obrigação de malhar diariamente para ter um corpo que agrade a um cônjuge-empregador. Para algumas comunidades do século antepassado, vulgo gente comum que mora a poucas quadras de mim, usar o salto certo, a altura da saia certa, a micro tatuagem sensual certa na nuca, é visto como um dom, um talento. Talento não deveria ser associado a uma vida própria e profissional?
Anterior a ser uma fêmea, tô nessas de "vida pra produzir algo que importe" (pra falar a verdade: que provoque). Às vezes, para sapiens mais inseguros, isso é visto como "que tipo de gênero você assinala nos formulários?". De qualquer forma, seja qual for o sexo, hoje não tem. Tô sem saco. Contudo, admiro seu andar pesado "de homem precisando se descarregar", sua coceira seca na garganta: "algo de minha química diz que eu deveria ter voz altiva, ao invés de angústia". E você me puxa e ordena. É na brincadeira, eu sei, mas lhe imploro: sigamos assim. Sou contra o machismo e absolutamente a favor do macho. Eu ordeno que você mande em mim.
Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo.
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