sábado, 24 de janeiro de 2015

Anotações nipônicas

O sujeito mal sai de férias, passa uns dias longe do eito e já arrota que os equatorianos queimam bonecos no final do ano, as finlandesas são de parar o trânsito e os húngaros adoram beterraba.
É com autoridade semelhante (três viagens, incluindo uma bolsinha de estudos) que aqui se abstraem milênios de história e de cultura, sobe-se num caixote e, com o coração em festa, abre-se um parágrafo para proclamar:
O Japão é bem legal.
Os 37 milhões de moradores da grande Tóquio, a maior colmeia urbana do mundo, escutam quando cai um confete no chão, tal o silêncio da megalópole. Mas fingem que não ouviram porque é feio reparar nos ruídos alheios.
Ninguém trata o estrangeiro tão bem. Toda sorrisos, a nipônica explica o caminho até a estação de metrô adequada. Indaga de onde vem o forasteiro e, ao receber a resposta, infalivelmente aponta o chão, para demonstrar que o Brasil fica do lado oposto do planeta.
O estrangeiro espalha que os filhos do sol nascente não agem assim por cortesia, e sim por condescendência: eles se acham, e tratam os de fora como inferiores. Coisa de gaijin, claro.
Ainda assim, os japoneses são ciosos das virtudes que os distinguem dos ocidentais: o comedimento que é quase modéstia, a pátina de polidez a recobrir os gestos, o concerto harmônico de capricho e praticidade, a limpeza dos seres e da sociedade, o senso de igualdade.
Há balela em excesso nesse discurso. Quem o diz é Mari Hirata, durante uma visita --demasiado-- matutina ao mercado de peixe de Tóquio. Escolada na militância marxista, e descolada na escola da vida, ela sabe do que fala.
Mari nasceu em São Paulo e morou muitos anos em Paris. Mudou-se para o Japão, onde casou com um local ("mais japonês, impossível: ele não fala nunca e faz miniaturas quando volta do trabalho") e criou os filhos enquanto ganhava a vida como chef, aliás, de mão cheia.
Ela contou da competição entre os japas e da rispidez com que tratam um ao outro. Mesmo falando japonês tão bem quanto o imperador Akihito, Mari se finge de estrangeira quando pede uma informação.
Ao preparar um atum de comer de joelhos, ela falou da identidade forçada entre trabalhadores e grandes empresas. Dos apartamentos apertados em prédios mal ajambrados, com paredes que parecem de papel crepom. Dos empréstimos que submetem os funcionários às corporações, inviabilizando a aventura. Do futuro incerto.
A igualdade, disse Mari ao contemplar um saquê de se sorver de olhos fechados, é para valer. Ela já foi à casa de um bambambã da Sony e constatou que ele não tinha empregada.
Mas a nipo-igualdade nada tem de socialismo. Ela mascara a padronização alienante, reificada goela abaixo da japonesada. O mercado centenário onde compramos o peixe divino, por exemplo, virá abaixo em breve, vitimado pelo capital.
Como fica em Ginza, bairro de metro quadrado mais caro do sistema solar, e as olimpíadas de 2020 estão logo aí, o mercado imobiliário engoliu o mercado de peixe.
No lugar das enguias, os tubarões botarão mais hotéis Hyatt; mais lojas da Apple; mais Starbucks. Haverá em Ginza mais sushi industrializado, menos bibocas suspeitas, e nenhum peixeiro.
Tudo bem, ao menos para quem mora no país hiperpobre que lhe é antípoda. Desde que o trem prevaleça sobre o carro, e o metrô sobre o ônibus.
Que o banho coletivo persista, mostrando que somos corpos nus em busca de luz, espécimes de uma espécie à cata de calor líquido. Que o pagode de quinhentos anos permaneça de pé, ao lado da placa informando que determinado cedro tem um século a mais.
Que o Japão faça ainda muitas exposições de peônias. Que toque bossa nova nos bares. Que se veja o Monte Fuji da janela do trem-bala.


Texto de Mário Sérgio Conti, na Folha de São Paulo

Nenhum comentário:

Postar um comentário