Finais de ano são sempre entediantes. No jornalismo, digo. As notícias não abundam. Ficam balanços sobre feitos passados --e previsões para um futuro que ninguém, obviamente, sabe como será.
Normalmente, desligo o radar durante a quadra e, nos momentos de sobriedade, espreito as primeiras páginas. Só uma ocupou a minha atenção: o caso de um raio que matou quatro pessoas na Praia Grande, no litoral de São Paulo.
Haverá maior tragédia? Sim, haverá maior tragédia do que deixar o mundo quando a sorte nos deixa também?
Falei de "sorte" e não foi por acaso. Há anos que vivo obcecado por ela. Razões pessoais. Razões intelectuais.
As pessoais são tangíveis: contemplo o que ficou para trás e reparo que a minha vida foi uma sucessão de sortes e alguns azares.
Poderia dizer, mentindo com a dentadura inteira, que subi a corda com os meus próprios pulsos ensanguentados. Boa imagem. Falsa imagem.
Houve esforço, claro. Muito. Mas houve sorte. Muita. Nasci onde nasci. Na família certa.
E, depois, os planos que tracei para mim foram muitas vezes alterados pela margem de sorte que tive --ou não tive. As pessoas que conheci --e perdi. Os projetos que fiz --ou não fiz. E as doenças que vieram --ou não vieram (ainda): fui muitas vezes espectador de mim próprio num filme que nem sempre produzi.
Aliás, por falar em doenças, não é simplesmente risível que uma das notícias médicas do ano seja a conclusão de que a maioria dos tipos de câncer não se deve a fatores genéticos ou ambientais, mas ao mesmo tipo de sorte, ou de azar, que matou quatro pessoas na Praia Grande?
"Pense positivo", dizem os débeis aos moribundos, juntando a culpa à doença. Palavras erradas. As palavras certas seriam: "Que azar". Ponto final, parágrafo.
E, no entanto, a cultura ocidental aboliu o "azar" da nossa gramática mental. Continuamos herdeiros do racionalismo socrático-platônico que triunfou com o Iluminismo continental do século 18: tudo depende de nós, nada existe de exterior a nós.
Darrin McMahon, de quem já falei nesta coluna, dedicou um livro inteiro ao assunto ("The Pursuit of Happiness", a busca da felicidade) em que conta essa história: para os pré-socráticos, a noção de "felicidade" estava intimamente ligada a questões de "sorte".
A própria palavra "felicidade", seja nas línguas nórdicas ou latinas, tem na raiz --"hap", "felix"-- essa dimensão de contingência que não controlamos.
Mas que era imperioso controlar porque nada perturba tanto a vaidade humana do que a ideia de valermos menos do que pensamos. "Domar a fortuna", para usar as palavras de um florentino célebre, seria transformar, enfim, cada ser humano no grande arquiteto da sua própria catedral.
Não nego os méritos dessa ousadia: deixemos a nostalgia das cavernas para os ilustres neandertais. Nos dias de calor, eu agradeço o ar-condicionado. E viajar de Lisboa para São Paulo é mais confortável pelo ar.
Mas esse racionalismo extremo, que foi dominando o pensamento da modernidade, não conseguiu apagar o desconforto primordial: a sensação amarga de sabermos que a sombra do imponderável acompanha os nossos passos e, no limite, pode até subvertê-los.
Curiosamente, enquanto grande parte da filosofia fugia dessa sombra, negando-a ou ignorando-a, só os romancistas pareciam dispostos a enfrentá-la sem temor: nas histórias de Franz Kafka ou nos romances de Philip Roth, encontramos as provações desses Jós modernos que vivem e atuam num mundo imprevisível e imprevisto.
Há quem recuse essas desconfortáveis visões, que arruínam a rigidez progressista do nosso "software" existencial. Um erro. Seria mais útil aprender com elas.
Como defende Nassim Nicholas Taleb (em "Antifrágil"), um filósofo que tem a vantagem de pensar longe dos sarcófagos acadêmicos, o contrário de sermos "frágeis" não é sermos "fortes".
É, como o título do livro indica, sermos "antifrágeis", ou seja, capazes de encontrar flexibilidade no caos, sem a pretensão patética de segurarmos o mundo com a ponta de um dedo. Quem diria: sobrevivência é mesmo adaptação.
Agora que 2015 começa, a única coisa sensata que o leitor pode desejar aos outros é a mesma que os outros lhe podem desejar a si: boa sorte e nada mais.
Texto de João Pereira Coutinho, na Folha de São Paulo.
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