Opinião: Rei Abdullah personificava crueldade do regime saudita
ANDREW BROWN
DO "GUARDIAN"
DO "GUARDIAN"
É sempre possível contemplar a morte do rei Abdullah, da Arábia Saudita, e a ascensão ao trono do príncipe Salman, pelo lado positivo. Ela demonstra que, se as informações quanto à saúde precária do príncipe herdeiro procedem, a demência não impede uma pessoa de atingir os mais altos postos - desde que ela tenha os pais certos.
Para muitos sistemas políticos, ter um homem cujas faculdades já não estão à altura da tarefa no comando do governo é um perigo conhecido -basta lembrar do Papa João Paulo 2º. Mas a Arábia Saudita é única no mundo moderno por escolher como líder um homem visto como em declínio já antes de chegar ao poder.
E o absurdo só aumenta se considerarmos que o reino é cruel em si, e uma fonte de crueldade e corrupção para o resto do mundo. A Arábia Saudita pratica tortura e assassinatos judiciais arbitrários.
Mulheres são decapitadas nas ruas, e pensamentos liberais são passíveis de punição com chibatadas, o que pode representar uma morte ainda mais horrenda, já que o processo é bem mais longo do que o de ter a cabeça decepada por uma espada.
A Arábia Saudita é uma jangada de medo e ódio entrelaçados, flutuando sobre quantias inimagináveis de dinheiro, pelo menos para as minorias afortunadas. Entre os pobres, nem todos os quais são escravos ou estrangeiros, há o "tufshan", palavra especial que um antropólogo definiu como "um torpor sutil e incapacitante".
A influência saudita no mundo externo é quase totalmente maligna. Os jovens que o país enviou ao Afeganistão para combater se transformaram na Al Qaeda. Os jihadistas sunitas que os sauditas bancaram no Iraque e Síria se transformaram no Estado Islâmico.
O país espalha sua venenosa forma de islamismo pela Europa por meio de subsídios, e corrompe políticos e empresários ocidentais com sua cultura do suborno. Os sauditas sempre apelaram às piores formas do imperialismo ocidental: seu desdém pelos demais muçulmanos é quase tão grande quanto o de qualquer nacionalista norte-americano.
Mas é difícil imaginar que reformas melhorariam o país. O exemplo da União Soviética demonstra o quanto o colapso de uma autocracia totalitária pode ser caótico e apavorante. Ainda que os sauditas ainda possam contar com o Islã caso seu Estado desabe -os soviéticos perderam sua ideologia assim como seu império–, a interpretação estreita e puritana do islamismo que eles adotam dificilmente conduziria à paz.
Além disso, eles enfrentam inimigos xiitas em um arco que se estende da Síria, ao norte, passando pelo Iraque e Irã e chegando ao Iêmen, no sul, onde a insurgência vem ganhando espaço firmemente; e existe uma minoria xiita, impiedosamente reprimida, na própria Arábia Saudita.
Todas essas ameaças devem reforçar o aparato de repressão e a crença dos governantes em que, caso percam seu domínio, cairão e terminarão pisoteados. E é bem possível que tenham razão. Seria necessário um líder verdadeiramente sábio e experiente para navegar as águas complicadas que existem à frente.
Os tributos servis prestados por políticos ocidentais ao rei morto descrevem o monarca saudita imaginário de que precisamos, não aquele que tínhamos ou provavelmente viremos a ter.
ANDREW BROWN é jornalista especialista em religião do "Guardian". Autor do livro "Fishing in Utopia" (ed. Granta UK), ganhador do Prêmio Orwell em 2009.
Tradução de PAULO MIGLIACCI
Texto da Folha de São Paulo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário