Na semana passada, quando relatórios sobre tortura vieram a público no Brasil e nos EUA, os poucos observadores que tomaram nota de sua divulgação quase simultânea constataram os aspectos positivos da simetria: duas democracias grandes, cada uma delas com a força necessária para encarar seu lado sombrio.
No caso americano, o relatório do Senado trata da tortura de estrangeiros cometida por americanos. O relatório da Comissão Nacional da Verdade focaliza brasileiros torturando brasileiros. Mas ambos examinam uma política do Estado possibilitada pelos escalões mais altos de seus respectivos governos. E as comparações param por ali, quase.
Para começar, um resumo dos números. De acordo com o relatório do Comitê de Inteligência do Senado, 119 detentos foram encarcerados em prisões secretas, sendo 39 deles torturados por funcionários e contratados a serviço da CIA. Três deles foram submetidos ao "waterboarding", tendo sido quase afogados. Cinco deles que recusaram alimentos ou água foram sujeitos a um experimento chamado "reidratação retal". Quarenta e sete ficaram detidos por mais de um ano, e 26 não satisfizeram os critérios para detenção definidos pela própria CIA.
A categorização feita pela Comissão Nacional da Verdade não é análoga, mas nos dá um senso da escala. Agentes do Estado identificados como responsáveis por violações graves: 377. Desaparecidos e mortos oficialmente confirmados, 434; mortos, 191; desaparecidos, 243; e o número citado pela comissão de brasileiros torturados durante o Estado Novo pode ter alcançado espantosos 20 mil.
O que talvez chame mais a atenção é o contraste nas reações aos dois relatórios. Nos EUA, geralmente somos melindrosos em relação ao próprio uso da palavra "tortura". Algumas pessoas a colocam entre aspas. É mais frequente ouvir o eufemismo "técnicas de interrogatório aumentadas". Outros se colocam claramente na defensiva, protestando que, depois do 11 de Setembro, a CIA estava desesperada para prevenir um novo ataque. Ainda outros adotam uma postura agressiva de apoio; Dick Cheney disse aos americanos no domingo passado que "faria tudo de novo em um minuto".
Temos ao menos um "falcão" republicano, John McCain, implorando a seu partido que leia o relatório e pregando o mantra do "nunca mais" de alguém torturado como prisioneiro de guerra no Vietnã.
A defesa da senadora democrata Dianne Feinstein, que impeliu o relatório, o ultraje diante da imoralidade e ilegalidade da tortura e o problema de responsabilização ("accountability") da CIA têm sido palpáveis e implacáveis, pelo menos entre os democratas que não são candidatos à Presidência.
Mas minha pesquisa superficial sobre as reações no Brasil ao trabalho histórico (embora atrasado) da CNV revela algo quase blasé. Nada de aspas. Nada de eufemismos. Por quê? A tortura por parte das forças de segurança brasileiras ainda é comum. O público ainda abraça a "mão dura". Deixando essas diferenças de lado, ambas as sociedades vão agora enfrentar a questão da impunidade.
Texto de Julia Sweig, publicado na Folha de São Paulo.
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