Escrevi outro dia sobre aqueles políticos e intelectuais que, em plena Guerra Fria, procuraram manter-se numa situação de equilíbrio, apontando os erros dos dois lados em conflito.
Mas pode haver problemas nessa busca de independência. Veja-se o caso narrado por Matteo Palmieri (1406-1475), um erudito florentino. No seu interminável poema "A Cidade da Vida", ele imagina um grupo de anjos que, diante da revolta de Lúcifer contra Deus, preferiu não tomar partido.
Ficaram, por assim dizer, em cima do muro.
Na verdade, o lugar onde se assentaram não era exatamente um muro: tornou-se a Terra, e esses anjos somos nós. Longe da "imoderada bondade" dos santos de Fra Angelico, e também da "imoderada maldade" dos demônios de outro pintor renascentista, Andrea Orcagna, somos "exilados conscientes", impregnados da melancolia delicada que há nas figuras de Botticelli.
É o que leio num célebre livro sobre a Renascença, escrito no final do século 19 pelo inglês Walter Pater (1839-1894). "O Renascimento" aparece agora na coleção "Pólen", da editora Iluminuras, com tradução de Jorge Henrique Bastos.
Walter Pater (pronuncia-se "Pêiter") foi um dos líderes do movimento esteticista, que encontraria seu apogeu na figura de Oscar Wilde.
Seus escritos anunciam a ideia de que a busca da beleza, por si mesma, justifica a vida. Da breve conjunção de átomos de que somos feitos, nada restará de nosso; tudo será matéria para outra coisa, pedra, inseto, gelo ou pétala.
O que nos foi dado, diz Pater, "é apenas um intervalo, e então o lugar em que estivemos não nos conhece mais". Daí se justifica "o nosso esforço desesperado de ver e tocar".
"Nossa única chance", prossegue ele no capítulo final de "O Renascimento", está em "expandir esse intervalo, obtendo o maior número de pulsações no período dado", de maneira a viver num estado de "consciência acelerada, multiplicada".
Apesar da elevação do estilo, há algo de economista em Walter Pater; a sensação de que "nada mais resta a fazer" num mundo em que "as sombras já se alongaram demais" não deixa de ser típica, ademais, daquelas famílias britânicas que, já tendo feito fortuna há séculos, percebem que o melhor é aproveitar a vida antes que seja tarde demais.
Só que as coisas raramente possuem um único sentido político. Esse espírito "decadentista" e "fruidor" foi também revolucionário num país, e numa época, entristecidos pelos rigores do protestantismo, da indústria, da sexualidade vitoriana.
Em mais de uma passagem, "O Renascimento" faz elogios velados ao homoerotismo; o culto da beleza corporal masculina se inscreve numa cuidadosa propaganda da cultura "pagã".
Este é apenas um dos pontos em que a influência de Pater não parece tão restrita quanto dá entender o historiador italiano Mario Praz, na introdução a bem dizer infeliz que acompanha o volume da editora Iluminuras.
Como não ver, além da influência que Pater exerceu sobre Oscar Wilde e outros "decadentistas", a semelhança entre sua filosofia de vida e as convicções mais profundas de Proust?
Não vive de verdade quem não percebe tudo o que, no mundo, se oferece de vivo e comunicativo. "Nesse curto dia de geada e sol", isso seria o equivalente a "dormir antes do anoitecer"... A frase é de Pater, e Proust não diria coisa diferente.
Apesar de um tom às vezes predicativo, quase eclesiástico (como Ruskin ou Emerson), "O Renascimento" está repleto de grandes passagens virtuosísticas, de uma quase sobrenatural percepção.
Não é fácil dizer algo que preste sobre a "Mona Lisa". O trecho de Pater sobre o quadro de Leonardo consagrou-se como um verdadeiro poema em prosa. A Gioconda "morreu várias vezes", "desceu ao fundo dos mares e guarda consigo os seus crepúsculos", diz ele, pensando no próprio espírito renascentista.
Não fica muito atrás o comentário do autor sobre o Adão da Capela Sistina. Pater observa que, na pintura de Michelangelo, a criação do homem "tem todas as características da ressurreição, é como o recobramento da saúde ou da animação que estavam suspensas, com sua gratidão, sua efusão e sua eloquência".
Gratidão, efusão e eloquência são também os sentimentos de Pater diante de tantos mestres; mostram que, da pureza de Adão à sabedoria vampiresca da Gioconda, temos todos o céu e o inferno dentro de nós.
Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário