quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Relatório do Senado sobre prática de tortura mostra disputas internas na CIA

Em janeiro de 2003, passados dez meses do programa de prisões secretas da CIA, o chefe de interrogatórios da agência enviou um e-mail aos colegas dizendo que o tratamento impiedosamente brutal dado aos prisioneiros era um "trem prestes a descarrilar e pretendo sair desse trem antes que aconteça". Ele disse ter informado seus chefes que tinha "sérias reservas" a respeito do programa e que não queria mais estar associado a ele "de qualquer forma".

As disputas internas no programa de interrogatórios da CIA foram apenas um sintoma da disfunção, desorganização, incompetência, ganância e logro descritos no resumo do relatório do Comitê de Inteligência do Senado. Em mais de 500 páginas, o resumo, divulgado na terça-feira (9), pinta um quadro devastador de uma agência mal equipada para lidar com a tarefa de interrogar os suspeitos da Al Qaeda, que estragou o trabalho e depois interpretou erroneamente os resultados.

A CIA reconheceu os problemas nos primeiros meses do programa, mas sugeriu que foram corrigidos.

"O estudo como um todo leva o leitor a acreditar que as falhas da direção que marcaram os meses iniciais persistiram ao longo de todo o programa, o que é historicamente incorreto", disse a agência.

O relatório do Senado é a condenação mais arrebatadora da CIA desde que o Comitê Church, liderado pelo senador Frank Church de Idaho, acusou a agência nos anos 70 de espionagem doméstica, assassinatos e uso de LSD em pessoas, entre outras condutas impróprias. Aquele relatório levou a uma série de novas leis e restrições às atividades da CIA.
A reação do chefe de interrogatórios ocorreu em meio à tortura de Abd al-Rahim al-Nashiri, suspeito nos atentados a bomba contra duas embaixadas americanas e um navio da Marinha. O pessoal da CIA que trabalhava no programa secreto se dividiu em dois campos. De um lado estava o chefe de interrogatórios e quase todo seu pessoal em campo, que interrogavam Nashiri. Após dois meses de "interrogatório duro", como escreveu o chefe, eles acreditavam que o prisioneiro "em grande parte falou a verdade e não está retendo informação significativa".

Do outro lado estavam o dr. James E. Mitchell e o dr. Bruce Jessen, dois ex-psicólogos militares que aconselhavam a agência a usar a simulação de afogamento e outros métodos coercivos. Com o apoio do quartel-general da CIA, eles insistiam repetidamente que Nashiri e outros presos ainda retinham informação crucial, e que a aplicação de dor suficiente e desorientação acabaria os forçando a revelá-la. Eles achavam que o outro campo estava conduzindo um programa de interrogatório "efeminado", diz o relatório.

Se os interrogadores de Nashiri tivessem "liberdade de uso pleno das medidas de interrogatório e técnicas expandidas", incluindo a simulação de afogamento, escreveu Jessen, eles conseguiriam obter mais informação. Esse tratamento, ele escreveu, após os dois meses prévios de tratamento extremamente duro a Nashiri, produziria "o nível desejado de impotência".

A agência evidentemente esqueceu suas próprias conclusões, enviadas ao Congresso em 1989, de que "técnicas físicas ou psicológicas inumanas são contraproducentes, porque não resultam em inteligência e provavelmente produzirão respostas falsas", dizia o relatório. Os membros do Senado democrata que estudaram o programa pós-11 de Setembro chegaram a uma avaliação idêntica: que a simulação de afogamento, jogar os presos contra a parede, nudez, frio e outros maus-tratos produziram pouca informação de valor para prevenir o terrorismo.

O relatório dedica pouco tempo à condenação da tortura com bases morais ou legais. Em vez disso, ele trata principalmente de uma questão prática: a tortura realiza algo de valor? Olhando um caso após o outro, o relatório responde com um categórico não.

De fato, ele diz que "membros da CIA questionaram regularmente se as técnicas expandidas de interrogatório da agência eram eficazes, apontando que o uso das técnicas fracassava em estimular a cooperação dos detidos ou em produzir inteligência correta". Mesmo assim, os superiores ordenaram que os métodos continuassem sendo usados e disseram ao Congresso, à Casa Branca e aos jornalistas que estavam obtendo grande sucesso.

Tão notável quanto a conclusão central é o relato detalhado da má administração da CIA. Ambas as facções na disputa em torno dos interrogatórios, por exemplo, eram lideradas por pessoas com histórico que poderia desqualificá-las.

O chefe de interrogatórios, cujo nome não é citado no relatório, recebeu o cargo no final de 2002, apesar do inspetor-geral da agência ter recomendado que ele fosse "repreendido oralmente pelo uso impróprio de técnicas de interrogatório" em um programa de treinamento na América Latina nos anos 80.

E Mitchell e Jessen, identificados por pseudônimos no relatório, não realizaram nenhum interrogatório real. Eles ajudaram a dirigir um programa de treinamento na época da Guerra Fria para o pessoal da Força Aérea, no qual provavam uma amostra do tratamento duro que enfrentariam caso fossem capturados por inimigos comunistas. O programa –chamado SERE (sigla em inglês para Sobrevivência, evasão, resistência e fuga)– nunca visou ser usado em interrogatórios americanos e envolvia métodos que produziam falsas confissões quando usados nos aviadores americanos detidos pelos chineses na Guerra da Coreia.

Mas o programa permitia aos psicólogos avaliarem seu próprio trabalho –eles lhe deram excelentes notas– e cobrarem uma diária de US$ 1.800 cada, quatro vezes o salário de outros interrogadores, para submeter os detidos à simulação de afogamento. Mitchell e Jessen posteriormente abriram uma empresa que assumiu a direção do programa da CIA de 2005 até seu encerramento, em 2009. A CIA pagou a ela US$ 81 milhões, mais US$ 1 milhão para proteger a empresa e seus funcionários de responsabilidade legal.

No início do programa, diz o relatório, "um agente novato em seu primeiro trabalho no exterior, que não tinha nenhuma experiência com prisões e interrogatórios, foi colocado no comando de uma prisão da CIA no Afeganistão conhecida como Poço de Sal. Outros funcionários da CIA tinha proposto anteriormente que ele fosse privado de acesso à informação confidencial por "falta de honestidade, juízo e maturidade".

A agência nem mesmo conseguia monitorar as pessoas que mantinha detidas. Em um cabograma de dezembro de 2003 ao quartel-general da CIA de um dos países com uma prisão secreta, o chefe de estação da CIA escreveu: "Nós fizemos a descoberta perturbadora de que mantemos detido um grande número de pessoas sobre as quais sabemos muito pouco". A maioria dos prisioneiros não era interrogada há meses e parecia ter pouco valor para a inteligência.

Mas pouco dessa desordem chegou à atenção das agências parlamentares de supervisão da CIA, da Casa Branca ou do público, que eram repetidamente assegurados por uma sucessão de diretores da CIA de que o programa era altamente profissional e muito bem-sucedido.

Texto de Scott Shane para o The New York Times, reproduzido no UOL. Tradutor: George El Khouri Andolfato

Nenhum comentário:

Postar um comentário