quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Para onde vamos após os acontecimentos em Ferguson (EUA)?

Quando Ferguson se inflamou nesta semana após um grande júri não indiciar o policial branco Darren Wilson pela morte de um jovem negro desarmado, Michael Brown, duas realidades foram iluminadas: negros e brancos raramente veem raça da mesma forma e nem concordam sobre como resolver os conflitos raciais, e os negros travam debates morais furiosos entre eles longe dos ouvidos brancos.
Esses mundos em colisão de percepção racial são o motivo para muitos americanos verem o mundo de modo tão diferente, e o motivo para os comentários recentes do presidente Barack Obama e do ex-prefeito de Nova York, Rudolph W. Giuliani, ferirem profundamente a identidade negra nos Estados Unidos.
Desde o início, a maioria dos afro-americanos estava convencida de que a morte de Michael Brown não seria considerada de forma justa pela Justiça criminal de Ferguson. Havia dúvidas sobre se a promotoria e a defesa eram realmente duas equipes diferentes. O promotor, Robert McCulloch, parecia estar preparando uma escaramuça intramuros visando impedir Wilson de ser indiciado.
Entre os documentos divulgados após a decisão do grande júri estava o depoimento de quatro horas de Wilson, no qual o policial de 1,93 metro e 95 quilos disse que seu encontro com o adolescente de 1,93 metro e 132 quilos fez com que ele se sentisse "uma criança de 5 anos agarrando (o astro de luta livre) Hulk Hogan". Ele usou o pronome impessoal "it" quando disse que Michael Brown parecia um "demônio" se voltando contra ele. Para o policial e muitos brancos, Michael Brown era a ameaça negra, o fantasma aterrorizador que assombra a imaginação branca.
Esse choque de percepções ressalta a física da raça, na qual ocorre um efeito do observador: o instrumento pelo qual alguém percebe a raça –a cultura, experiências, medos e fantasias da pessoa– altera de formas cruciais aquilo que mede.
A romancista Ann Petry capturou vividamente esse efeito do observador em seu romance de 1946, "The Street", no qual a protagonista afro-americana, Lutie Johnson, comenta que as percepções raciais dos negros "dependem de local onde você está sentado". Ela explica que se "você olhar para eles por um prisma moldado por um salário semanal farto, e pensar nas pessoas de cor como sendo naturalmente criminosas, então você será incapaz de ver como um negro se realmente é", porque "o negro nunca será um indivíduo", mas sim "uma ameaça, um animal ou uma maldição".
Após um negro ser morto em um assalto fracassado, ela nota que um repórter "viu um negro morto que tentou assaltar uma loja, de modo que não conseguia ver realmente qual era a aparência do homem estirado na calçada". Em vez disso, ele viu "a imagem que já tinha em sua mente: um negro enorme, musculoso, vociferante, ignorante e com disposição criminosa".
A desumanização assustadora dos negros na cultura americana se materializou de novo quando Wilson viu Michael Brown como uma força demoníaca que precisava ser vencida com uma rajada de balas.
É quase impossível transmitir o medo que toma o coração dos negros americanos toda vez que um veículo da polícia para. Quando eu tinha 17 anos, meu irmão, um amigo de infância e eu fomos parados por quatro policiais de Detroit em uma carro sem ser oficial. Isso foi em meados dos anos 70, à sombra da infame força-tarefa do Departamento de Polícia de Detroit chamada Stress (sigla em inglês para "Para os assaltos, desfrute ruas seguras"), que foi iniciada após os distúrbios de 1967. A unidade fazia jus ao seu nome e visava rotineiramente os negros.
Ao sermos colocados contra o carro, eu anunciei a um dos policiais à paisana que pegaria em meu bolso traseiro o documento do carro na minha carteira. Ele me deu uma coronhada na cabeça e me derrubou no chão, prometendo, com um xingamento racial. que poria uma bala na minha cabeça se eu me movesse de novo.
Quando me levantei, encolhido, mostrando deferência completa, o policial me permitiu mostrar o documento do carro. Quando os policiais fizeram a checagem, eles concluíram o que já sabíamos: que o carro não era roubado e que não éramos ladrões. Eles nos mandaram embora sem qualquer indício de pedido de desculpas.
Minha briga recente com Giuliani em um programa de televisão explorou um veio profundo de percepção racial. Em uma discussão no programa "Meet the Press" sobre Ferguson e suas consequências raciais, Giuliani desviou a conversa para a crença conservadora de que o verdadeiro problema enfrentado pelas comunidades negras não é a brutalidade pelas mãos de policiais brancos, mas a brutalidade por marginais negros. Ele citou o fato de 93% das vítimas de homicídio negras serem mortas por negros. Eu argumentei que esses assassinos costumam ir para a cadeia, diferente dos policiais brancos que matam negros com apoio do governo.
O que eu não tive tempo de dizer foi que 84% das vítimas de homicídio brancas são mortas por brancos, mas que não existe nenhuma linguagem de condenação para emoldurar o mal dos brancos contra brancos que exija resposta por ações violentas da polícia.
Isso não significa que os negros não estejam cansados da morte que assola nossas comunidades. Eu testemunhei isso pessoalmente, em um tribunal de Detroit há 25 anos, durante o julgamento de meu irmão Everett por homicídio em segundo grau, e apesar de acreditar até hoje na sua inocência, eu o vi ser condenado por um júri todo negro e sentenciado a prisão perpétua.
Muitos dos brancos que apontam para negros matando negros são movidos menos pela preocupação com as comunidades negras e mais pelo desejo de rechaçar as críticas a policiais brancos injustos. Eles acreditam que estão oferecendo novas ideias aos negros sobre o perigo que fomentamos em nossos próprios bairros. Essa ideia também encontrou um campeão em Bill Cosby, que ao longo da última década fez duras acusações morais aos negros pobres, com uma intensidade horrível endossada pelos críticos brancos como sendo amor duro e aceita pela maioria dos jornalistas negros como conservadorismo doméstico.
Mas as críticas humilhantes por Cosby são mais perniciosas que isso. Como alguém poderia defender seu indiciamento misógino da moral frouxa das mulheres negras e incapacidade de criar os filhos? "Cinco, seis filhos, mesma mulher, oito, 10 maridos diferentes", ele gostava de recitar. "Em breve será preciso ter documentos de DNA para saber com quem você está indo para a cama. Você não sabe quem é; pode ser sua avó."
Mea culpas por jornalistas agora acompanham a queda shakespeariana em desgraça de Cosby. Ele agora é pintado como um rei lascivo que é mais pecador do que vítima de pecado, após o acúmulo de acusações de drogar e estuprar mulheres. Mas esses jornalistas não mencionam os antolhos sexistas que os impediram de ver quão odioso Cosby foi em relação às mulheres negras muito antes de ser acusado de abusar mulheres em sua maioria brancas.
Bill Cosby não inventou a política da respeitabilidade –a crença de que bom comportamento e repreensão severa curarão os males negros, elevarão os negros e convencerão os brancos de que somos humanos e dignos de respeito. Mas ele certamente lhe deu uma bravata que de lá para cá foi polida por Barack Obama.
O presidente repreendeu os negros por nossas falhas morais diante de plateias de formandos universitários e convenções de direitos civis. Mas seus temas são surrados e uma mistura de inócuo e insidioso: levantem suas calças, parem de inventar desculpas raciais para o fracasso, parem de se queixar de racismo, desliguem a televisão e os videogames e estudem, não alimentem seu filhos com frango frito no café da manhã, sejam bons pais.
Como grande fã da política de respeitabilidade, Obama é o lembrete mais eloquente de que ela não funciona, independente de quão inteligente, sofisticado ou aprumado alguém seja. E não importa quão agradável seja para os ouvidos brancos repreender os negros, as suspeitas em torno da identidade negra persistem. Apesar de suas realizações e carisma, ele continua sendo para milhões de pessoas o "outro" da vida nacional, o oposto do que querem dizer quando pensam nos Estados Unidos.
Barack Obama, como Michael Brown, é mudado diante de nossos olhos em uma coisa monstruosa que carece humanidade: um macaco, um enigma, um buraco negro que mata a luz. Alguém poderia esperar que o alvo supremo dessa alteridade do negro teria compaixão por seus alvos menores, que também têm uma posição inferior e menos proteção, como as pessoas em Ferguson, em Ohio, em Nova York, na Flórida, por todo o país, que não podem impedir que seus filhos desarmados sejam mortos nas ruas por policiais insensíveis, que deixam seus corpos enrijecendo na presença de espectadores horrorizados.
A abordagem clínica de Obama à raça foi cimentada após o incidente de 2009 envolvendo Henry Louis Gates Jr. –no qual o professor de Harvard e o policial branco que o prendeu por invadir sua própria casa foram convidados à Casa Branca para conversa conciliadora tomando uma cerveja– o convencendo de que deveria falar sobre raça apenas quando fosse forçado.
Ele emprega uma estratégia dupla: o "heroico explícito", no qual ataca de forma clara e deliberada o fracasso moral e os hábitos culturais ruins dos negros, e a "nobreza implícita", na qual evita associar os brancos aos problemas ou patologias sociais e fala nos termos mais amplos possíveis, em uma gramática tanto hesitante quanto tortuosa, sobre os problemas que todos enfrentamos. É um esforço que se apoia em falsas equivalências entre negros e brancos e confunde a identificação do efeito como sendo causa.
Obama falou duas vezes após a decisão do grande júri de Ferguson. Ele falou na noite de segunda-feira sobre os Estados Unidos como uma nação de leis e disse que devemos respeitar a conclusão do júri, mesmo que não concordemos com ela, e obter progresso trabalhando juntos –não atirando garrafas, quebrando janelas de carros ou usando raiva como desculpa para vandalizar propriedade ou ferir alguém.
Na terça-feira, o presidente dobrou sua condenação aos "atos criminosos" e declarou, "eu não tenho nenhuma simpatia" por aqueles que destroem "suas próprias comunidades". Apesar de ter evitado dizê-lo, estava claro que seus comentários eram direcionados aos negros que saqueavam e provocavam quebra-quebra em Ferguson. Mas a atividade criminosa deles é o efeito de não serem reconhecidos pelo Estado há décadas, um crime por si só. Quanto à praga dos policiais brancos que matam jovens negros desarmados, fatos que são tediosa e repetidamente enojantes às mentes negras, além de imporem um alto preço psicológico, o presidente foi vago e hesitante, sem querer se comprometer.
Em vez disso, ele saudou o progresso racial que ele disse ter testemunhado "em meu tempo de vida", substituindo a vida dele pela nossa, e sinalizou de novo como a história dele de avanço era a nossa, sugerindo, infelizmente, que a soma de nossas fortunas políticas em sua presidência pode ser menor do que as partes de nosso sofrimento persistente.
Mesmo quando ele se esgueirou para a verdade e a cutucou gentilmente –"estes são problemas reais", reconheceu o presidente– ele voltou à insipidez emocional que minimiza a divisão abrasadora, dizendo que havia "uma impressão" das pessoas sobre policiamento injusto e "há questões na qual a lei passa com frequência a impressão de estar sendo aplicada de forma discriminatória".
De quem é a impressão, apesar da palavra dificilmente capturar os fatos do caso? Quem a sente? Quem é o alvo? Quem é o recebedor da ação? O ato de equilibrismo traiçoeiro de Obama entre negros e brancos, esquerda e direita, obscurece quem deteve o poder por mais tempo para tornar as coisas da forma como são. Isso é algo, é claro, que ele não pode admitir, mas que mesmo assim complica suas palavras e transforma um artista eloquente das palavras em um linguista desajeitado.
Obama disse que nosso país foi construído com base no Estado de direito. Isso é uma verdade, mas incompleta. A vida dele, a carreira dele, também é produto de leis violadas: seus pais teriam cometido um crime na maioria dos Estados na época de sua união inter-racial, e sem que Martin Luther King Jr. quebrasse leis que considerava injustas, Obama não seria presidente hoje. Ele é o paradoxo supremo: o produto de um ataque revolto ao reino do poder que ele agora representa.
Não é de se estranhar que ele se volte para seu próprio corpo, história e vida para narrar nossos corpos, histórias e vidas. O problema é que o negro comum não possui nem suas proteções contra o perigo e nem sua trajetória triunfante, que continuará mesmo após ele deixar a presidência.
Há  mais de 45 anos, a Comissão Kerner concluiu  que ainda vivemos em duas sociedades, uma branca, outra negra, separadas e ainda desiguais. O presidente Lyndon B. Johnson formou essa comissão enquanto as chamas que engolfavam sua nativa Detroit, após os distúrbios de 1967, ainda queimavam. Se nosso presidente e nossa nação agora não demonstrarem a vontade e coragem para dizer a verdade e mudar os destinos de milhões de cidadãos assediados, então estaremos condenados a assistir a reignição das mesmas chamas, sempre e onde quer que a injustiça encontre o desespero.

Texto de Michael Eric Dyson, para o The New York Times, reproduzido no UOL. Tradutor: George El Khouri Andolfato

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