Manuel é meu amigo de última hora. Pai solteiro de um filho autista, arrochamos o abraço quando descobrimos pensamentos semelhantes sobre a prática da inclusão e sobre tantos melindres que alguns insistem em botar sobre o universo de crianças com deficiência, ainda encaradas por muitos como bibelôs, como problemáticos ou como bichinhos especiais.
As minhas conversas com o Manu, embora com conteúdos sérios, sempre descambaram para piadas e para risadas compridas depois de nossas observações de comportamentos bizarros diante das diferenças. Mas, para minha surpresa, uma carta escrita por ele dias atrás me fez chorar.
Pais que têm filhos vulneráveis se afligem diante da possibilidade do abandono ao léu de suas crias depois de sua partida. Eles têm pressa, tem urgência para mudar o mundo. Eles trabalham dia e noite em busca de uma estrutura de apoio viável para a tranquilidade futura de seus meninos e para ensiná-los, de alguma maneira, a rachar o ovo para descobrirem a gema.
Em um trecho do desabafo, Manu faz uma revelação tão profunda de sentimento em torno dessa situação que não pude me conter. Copiei para botar aqui neste espaço onde "serumano" ainda tem vez:
"Quando cuidamos de alguém que achamos ser mais frágil, dependente, geralmente cuidamos de estabelecer uma rede de proteção, aumentando a percepção do que consideramos família. Abrimos mão de pequenos orgulhos e convicções para estabelecer afetos com pessoas que podem nos ajudar".
Imediatamente me lembrei de minha mãe me ensinando a dar bom-dia até para o gato velho e sujo do porteiro da escola. Lembrei-me dela sorrindo para desconhecidos, mesmo cansada ao extremo ao final do dia por ter empurrado minha cadeira de rodas por horas em ruas esburacadas da cidade pequena do interior. Mamãe estava tentando mudar o mundo e eu nem sabia.
Pensando no porvir de filhos com impedimentos físicos ou intelectuais severos, pais perdoam e tentam minimizar o bullying na escola porque precisam da escola, pais aceitam ver os filhos carregados nos braços por estranhos como opção a não vê-los ausentes do que têm vontade de viver e experimentar.
Pais evitam contratempos com vizinhos devido ao receio contínuo de precisar deles em um momento de pânico para acudir seu garotão tetraplégico preso no elevador. Pais de filhos com deficiência engolem sapo e o bodoque junto para conseguirem vaga na clínica pública de reabilitação, na primeira fila do avião e na sala do patrão para pedir perdão por não ter ficado para o serão.
Pouco se fala no Brasil --e menos ainda se constrói-- a respeito de moradias apoiadas ou com assistência, onde um adulto com down, por exemplo, poderia viver de maneira plena, com auxílio de profissionais que garantissem seu bem-estar e sua autonomia, sem a necessidade de uma doação ininterrupta da família ou de favores.
Torço firme para que a angústia do Manu por querer dar um turbo na consciência social a fim de que esse mundo mais solidário, mais plural e mais acolhedor com as diferenças aconteça depressa seja, no fundo, sentimento de todos aqueles que entendam o direito de viver e de amar incondicionalmente.
Texto de Jairo Marques, na Folha de São Paulo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário