Após 20 anos, mulher perde outra filha na guerra entre Estado e tráfico
EMILIO SANT'ANNA
ENVIADO ESPECIAL AO RIO
ENVIADO ESPECIAL AO RIO
"Fica calmo, garoto. É só não olhar para eles que não acontece nada", a mulher aconselha ao neto. Órfão há duas semanas, o menino de 12 anos se encolhe, vira o rosto e treme quando um Caveirão passa lentamente a seu lado. Não é a primeira vez, nem será a última.
O blindado da Polícia Militar do Rio prossegue favela adentro, ela puxa um saco plástico e de lá retira um recorte de jornal amarelado.
Nele, durante os últimos 20 anos, Célia Regina Conceição Germano "leu" a mesma foto. Analfabeta, não precisou conhecer as palavras para entender o significado da imagem desbotada. No meio da favela, a primogênita, Cátia Cirlene Conceição, 21, grávida de oito meses, morta por uma bala perdida da guerra entre o tráfico e o Estado.
Outras 11 pessoas, incluindo uma gestante, morreram naquele dia: 8 de janeiro de 1994.
Há duas semanas, ela guarda um novo recorte de jornal. Tem agora outra filha a menos. Morta da mesma forma. Grávida, como a mais velha.
"As coisas não mudaram muito por aqui." É tudo o que ela tem a dizer sobre o lugar onde criou os 13 filhos "que vingaram": Acari, na zona norte do Rio, o terceiro pior índice de desenvolvimento humano entre os bairros cariocas, segundo o IBGE.
Por ali, a esperança de vida ao nascer, 70,2 anos, é de cinco anos a menos do que a média da cidade.
Sob o calor inclemente do início de dezembro, ela sai de casa atenta aos tiros que ditam o ritmo na favela. Nos últimos tempos, a polícia é presença constante no bairro de quase 10 mil habitantes.
Até outubro deste ano, 84 pessoas morreram vítimas de homicídios dolosos na região, número que teima em não cair. Foram 86 e 79, respectivamente, no mesmo período do ano anterior e de 2012.
Prestes a completar 60 anos no próximo sábado (13), a mulher de olhar distante cultiva a certeza clara dos que não têm a quem recorrer. "Se eu cair, se chorar, são essas crianças que vão chorar, foram elas que perderam a mãe."
As crianças são quatro. Filhos de Ana Cláudia Germano Coutinho, 29. Grávida de três meses, foi morta no último dia 26, quando saía de casa para pegar o mais novo na sogra e levá-lo ao médico.
Naquele dia, soldados do 41º Batalhão da Polícia Militar faziam uma operação na favela, dominada por traficantes do TCP (Terceiro Comando Puro). Eram cerca de 8h30, quando, sem poder mais esperar, Ana Cláudia se "aventurou". Saiu se esgueirando, encostada a um muro. Morreu com um tiro na boca.
Testemunhas dizem que não havia ninguém na rua. A não ser um Caveirão. O tiro teria partido do blindando.
Levada ao hospital Ronaldo Gazola, no próprio bairro, a jovem não resistiu.
Levada ao hospital Ronaldo Gazola, no próprio bairro, a jovem não resistiu.
"Não queriam que eu visse minha filha no necrotério. Tentaram me dar um remédio e me mandar para casa. Não aceitei", diz Célia. "Só quando ela morreu soube que estava grávida... Meu Deus."
Resignada, diz não não esperat nada do Estado. "Justiça só conto com a de Deus. Sou filha de Xangô, tenho meus orixás. Pode demorar, mas Xangô faz Justiça", afirma.
Olhos atentos, os netos acompanham cada palavra da avó. "Foi o que a vida me trouxe", diz ela, como que anestesiada pela dor repetida.
COSTA BARROS
Dor, no entanto, não respeita limites geográficos ou território alheio. Tampouco é exclusividade da ex-faxineira. Em Costa Barros, ao lado de Acari, Rosinete Nascimento Mendes, 42, ainda tenta reencontrar sentido para a sua vida.
Em maio, perdeu o filho, Bruno, 22, espancado e morto quando saía de um supermercado. Três meses depois foi a vez da mãe, Maria de Lourdes Nascimento, 68.
Assim como no dia da morte da filha de Célia, soldados do 41º Batalhão da Polícia Militar faziam uma operação para prender traficantes do Complexo do Chapadão. Maria de Lourdes morreu com um tiro no peito. Bala perdida.
Após a morte, moradores fizeram um protesto contra a ação da PM.
A Polícia Civil do Rio diz que o caso está sendo investigado.
"Se tivesse condições, ia embora hoje daqui", diz a mulher. "Mas não tenho. O que posso fazer?"
Segundo Célia, só há um caminho: continuar. Esquecer, porém, é impossível.
Assim como ela diz não se esquecer de onde o primeiro luto a fez parar. "Chamaram as famílias das vítimas no Palácio Guanabara. Fui até lá e o Brizola [então governador] recebeu a gente e prometeu uma indenização. Meus outros filhos eram pequenos, mas ainda se lembram. Parecia um homem bom."
MÃES DE ACARI
Àquela altura, Acari era um dos bairros de menor desenvolvimento da cidade. Violência e casos de mortes não explicadas não eram novidade.
Quatro anos antes, o local havia se tornado notícia em todo o país pelo desaparecimento de 11 pessoas, 8 menores, no que ficou conhecido como Chacina de Acari. As investigações apontaram o envolvimento de policiais civis e militares nos crimes.
Revoltadas com o descaso do Estado, um grupo formou a associação das "Mães de Acari", nove mulheres que reivindicavam os corpos de seus filhos.
A mobilização alcançou repercussão com manifestações da Anistia Internacional e a da então primeira-dama da França, Danielle Miterrand, cobrando as autoridades brasileiras.
Vinte anos foram necessários para que o caso se encerrasse. Em 2010, os crimes prescreveram sem que ninguém fosse punido. Edméia da Silva Euzébio, uma das "Mães", não chegou a ver esse desfecho. Foi assassinada em janeiro de 1993.
No mesmo ano, duas matanças também acendiam o debate sobre a segurança pública no Rio: as chacinas da Candelária e de Vigário Geral.
Em janeiro de 1994, a morte da filha de Célia ao lado de outras 11 pessoas tinha potencial para atingir em cheio a opinião pública.
Nada disso aconteceu, os anos se passaram e a indenização nunca chegou.
"Cria de favela", o líder comunitário Fernando de Oliveira, 47, o "Fera de Acari", como é conhecido, também se lembra. "Infelizmente, foi assim. O governo dele [Brizola] acabou e as famílias não viram dinheiro nenhum", diz.
Em seus quase 50 anos, afirma, pouca coisa mudou na favela e na vida de seus moradores. "Ela [Célia] já tinha perdido uma filha assim, agora perdeu outra que deixou quatro filhos. É triste, mas essas crianças vão crescer e saber que a mãe morreu numa operação da polícia."
Na comunidade, que não tem uma UPP (Unidade de Polícia Pacificadora), a necessidade da presença da PM está longe de ser unanimidade.
Uma moradora, que pede para não ser identificada, é taxativa. "UPP? De jeito nenhum. Todo mundo viu o que aconteceu com o Amarildo. O que precisa é que eles [a polícia] parem de entrar aqui na favela desse jeito, dando tiro para todo lado", afirma.
Segundo Edinilsa Ramos de Souza, pesquisadora do Claves (Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli), a rejeição reflete a ausência do Estado nessas comunidades.
"Mesmo onde a UPP entrou, o que mais mudou? Outros equipamentos públicos não chegaram", afirma.
CALADO
Para a ex-faxineira Célia, pouca coisa além da dor mudou nos últimos 20 anos. Da raiva à resignação, assimilar "o que a vida lhe trouxe" foi questão de sobrevivência.
Cátia, a primeira a morrer, deixou dois filhos que ela tratou de criar. Os quatro de Ana Cláudia também contam apenas com ela e os pouco menos de R$ 1.000 que recebe –soma da pensão de uma filha e do Bolsa Família dos netos.
A vida para Célia passou a ser criar essas crianças e lutar para que elas ultrapassem a idade com que as mães morreram.
"Esse aqui é calado, tenho que estar sempre observando, só fica pelos cantos falando que a mãe não devia ter morrido desse jeito", aponta para o menino de 12 anos, filho mais velho de Ana Cláudia.
A morte, que talvez nunca cicatrize no garoto, ainda é apurada pela Estado. Segundo a Divisão de Homicídios, da Polícia Civil, uma perícia foi realizada no local, e as armas dos PMs foram apreendidas e encaminhadas para confronto balístico.
À Folha a PM informou que a operação em Acari foi realizada para checar informações do Setor de Inteligência e acabou também com um suspeito ferido e a apreensão de um pistola. 40. Sobre a morte de Ana Cláudia, a corporação afirma que o comando do 41º BPM abriu procedimento para apurar o caso.
A ex-faxineira, que diz que não espera nada, tem agora um novo recorte de jornal.
Reprodução da Folha de São Paulo.
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