terça-feira, 9 de dezembro de 2014

O mistério dos botocudos

O mistério dos botocudos

Ancestrais de alguns índios brasileiros viajaram 7.000 km de ilhas do Pacífico até aqui, e ninguém sabe bem como isso pode ter acontecido
MARCELO LEITEDE SÃO PAULO

Eram os botocudos polinésios? Geneticamente falando, pelo menos dois indivíduos desses índios praticamente exterminados no século 19 eram, sim, parentes de habitantes de ilhas do Pacífico a mais de 7.000 km de distância. Mas ninguém sabe como nem por quê.
O mistério volta a aumentar com um artigo do grupo de Sergio Danilo Pena, da UFMG, publicado em novembro no periódico "Current Biology". Novas análises de DNA eliminaram as duas hipóteses menos implausíveis para explicar a presença desses genes por aqui.
Sabe-se agora que eles não são descendentes de escravos de Madagáscar trazidos ao Brasil entre 1817 e 1843, quando navios negreiros tentavam evitar as patrulhas britânicas na costa oeste da África capturando-os no leste. Nem de escravos polinésios levados ao Peru na década de 1860.
Sobram as mais improváveis, quase impossíveis de provar: uma segunda entrada do homem nas Américas, anterior à mais aceita, há 12-14 mil anos, e migração direta de polinésios pelo Pacífico antes da chegada de europeus.
"Acho que está na hora de ser humilde e declarar ignorância", afirma Pena. Não é uma frase usual da parte de pesquisadores.

CRÂNIOS

A origem do povo botocudo é tão intrigante quanto sua aparência, marcada pelos lábios e orelhas alargados com discos de madeira.
Uma eficaz "guerra justa" foi movida contra suas aldeias em Minas Gerais, Espírito Santo e Bahia, no século 19, por ordem de dom João 6º. Aldeias da etnia também conhecida como "aimorés", que resistia ferozmente à assimilação, desapareceram sem deixar muitos registros.
Sobreviveu, no entanto, uma coleção de três dezenas de crânios de botocudos na coleção do Museu Nacional, no Rio de Janeiro.
Deles saíram os dentes que tiveram o DNA extraído para análise e renderam uma série de três artigos desconcertantes da equipe da UFMG, tendo Pena e sua aluna Vanessa Faria Gonçalves entre os autores principais.
O primeiro trabalho saiu em 2010 no periódico "Investigative Genetics". Debruçou-se sobre o DNA mitocondrial, uma diminuta fração dos genes que só as mães transmitem para filhas e filhos.
A comparação do material extraído dos dentes de 14 crânios botocudos com moradores atuais da cidade de Queixadinha (MG) identificou variantes genéticas incomuns partilhadas entre eles. Concluiu-se que deixaram descendentes entre os mineiros.
O segundo artigo, de 2013, foi publicado na americana "PNAS". Novo exame do DNA mitocondrial revelou que 2 daqueles 14 indivíduos, do sexo masculino, tinham marcadores característicos de populações polinésias.
A descoberta concordava, assim, com análises do formato dos crânios botocudos que sugeriam um parentesco com populações da Oceania. É esse também o caso de Luzia, o mais famoso esqueleto dos sítios arqueológicos de Lagoa Santa (MG).
Os autores discutiram na revista científica"PNAS" quatro possíveis explicações para essa ancestralidade (veja infográfico). Os cenários 1 e 2 foram considerados "extremamente implausíveis", afirma Pena.
Seu favorito na época era o quarto cenário, Madagáscar. Supunha-se que escravos trazidos da ilha tivessem gerado descendentes com índios brasileiros. Agora, porém, tudo se complicou. Desta vez a análise contemplou todo o DNA disponível nos dois dentes "botocudo-polinésios".
Em primeiro lugar, quase todo o DNA parece ter origem polinésia, o que exclui a possibilidade de miscigenação com ameríndios. Depois, a datação dos crânios mostra que os dois botocudos morreram antes do tráfico de escravos malgaxes no século 19.
"Toda essa discussão presume que dois crânios polinésios não possam ter sido acidentalmente incluídos na coleção do Museu Nacional", diz Pena. Não há evidência disso: "Os crânios estavam identificados como botocudos por escrito, com tinta, na própria calota craniana".
Continua sem solução o enigma dos botocudos.


Reprodução da Folha de São Paulo

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