segunda-feira, 20 de julho de 2015

Sobre a escrita


Não existem regras para se escrever ficção. Ou melhor, não existem regras gerais. Cada autor encontrará as que são invioláveis no próprio caso, digam elas respeito a gramática, horários, quantidade de luz na escrivaninha, ruína financeira e conjugal.
A metodologia também se adapta ao tipo de literatura almejada. Em "Sobre a Escrita", livro de 2000 lançado há pouco no Brasil pela Suma das Letras (R$39, 90, 256 págs., tradução de Michel Teixeira), Stephen King fala da necessidade de ler muito e ter autocrítica, dicas vagas o bastante para não estragar a diversidade literária do mundo nem o entusiasmo de ninguém. Mas parte do que é dito no texto serve mesmo para quem quer seguir o modelo de... Stephen King.
É fundamental, portanto, identificar onde está a autoridade de quem publica tratados do gênero. A do autor de "Sobre a Escrita" é diversa das de Mario Vargas Llosa ("Cartas a um Jovem Romancista"), Francine Prose ("Para Ler como um Escritor"), James Wood ("Como Funciona a Ficção") e tantos outros.
Se a literatura trabalha com elementos como linguagem, eficiência narrativa e densidade estética, King tem muito a dizer sobre o segundo deles. Em determinada passagem, ele se dispõe a fazer um exercício com o leitor, imaginando uma personagem feminina ameaçada pelo marido violento, e bastam três ou quatro parágrafos para percebermos que estamos diante de um mestre em manter nosso interesse por meio de ritmo e elementos de cena.
Já seus conselhos sobre linguagem são duvidosos, a não ser que se busque a transparência e comunicabilidade de certa tradição anglo-saxã de literatura gótica/psicológica, na qual advérbios não são "amigos" e a voz passiva equivale à de "menininhos usando bigodes de canetinha e menininhas andando com os saltos altos da mamãe".
É preciso boa vontade para dar crédito a quem deita regras sobre prosa usando imagens às vezes óbvias ou constrangedoras. Para King, o escritor que junta frases dispersas "se sente como Victor Frankenstein". Páginas com parágrafos curtos são "tão arejadas quanto um desses chocolates aerados". E a surpreendente descoberta de que "falar bem faz parte da sedução" ainda precisa ser complementada: "Se não fosse, por que tantos casais começariam a noite jantando e a terminariam na cama?"
Quanto à densidade estética, ou aquilo que faz uma obra ter valor literário para além do mero relato, King fica menos assertivo e melhora a pontaria. Com razão, ele acredita que a prática não faz o escritor ruim virar bom, nem o bom virar excepcional, mas pode ajudar quem é competente a se tornar um pouco mais do que isso.
Considerando que o talento é inato, ou adquirido em algum ponto misterioso da infância ou da juventude, a compensação possível fora do trabalho duro passa a ser a experiência. Que também não obedece a fórmulas: ela pode estar num navio pirata na África ou num casamento tedioso do Itaim Bibi, na lavanderia onde o King iniciante lidava com toalhas cheias de vermes ou no baronato maduro de seus 350 milhões de exemplares vendidos.
A isso eu acrescentaria, aproveitando o que o autor conta sobre sua biografia, incluindo a fase de alcoólatra e viciado em que produzia "com o coração a 130 batimentos por minuto e cotonetes enfiados no nariz", que é preciso lidar com a ansiedade. E com a depressão. E com a vaidade. E com a falta de autoestima.
Nos últimos dois casos (e, pensando bem, nos dois primeiros), recomendo um exercício: se sua autoimagem é a de um gênio, tente lembrar de quantas vezes alguém que não é seu amigo disse algo assim de você. Se sua autoimagem é a de um idiota, dê uma boa olhada nas pessoas consideradas geniais ao seu redor.
Lidar com os próprios fantasmas, o que alguém menos romântico/ingênuo chamaria de "o próprio tamanho" ou "o próprio temperamento", é tão importante quanto encontrar a técnica certa para que os anseios do artista se expressem de maneira adequada. Para ele, claro, e às vezes para mais ninguém.
Não importa: havendo certeza de que se fez o melhor diante das circunstâncias de cada livro, nas quais se incluem os itens pessoais e universais acima listados, o resto –para o bem e para o mal– já não depende de nós.


Texto de Michel Laub, na Folha de São Paulo

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