quarta-feira, 22 de julho de 2015

Não tem tradução

Não tem tradução

Ensaio publicado agora no país recorre à fotografia e à história para compreender a saudade
RAQUEL COZERCOLUNISTA DA FOLHA

Em meados da década passada, uma empresa britânica de tradução consultou mil especialistas em busca daquelas que fossem as palavras mais difíceis de traduzir. Saudade, em português, ficou em sétimo lugar na lista, perdendo para expressões em iídiche, árabe e dialeto africano.
Embora tenha similares em outros idiomas, como o alemão Sehnsucht e o romeno dor, a palavra portuguesa usada para definir o sentimento, esse misto de melancolia da perda e prazer da lembrança, tem nuances que escapam aos dicionários.
Tais peculiaridades foram dissecadas por séculos, rendendo incontáveis referências poéticas, como "gosto amargo de infelizes [...], delicioso pungir de acerbo espinho", de Almeida Garrett (1799-1854), além de tratados filológicos e literários, como "A Saudade Portuguesa", de Carolina Michaelis de Vasconcelos (1851-1925).
As livrarias brasileiras recebem, agora, uma tentativa de tradução ousada –escrita em francês por um estudioso de artes visuais, filho de português, que não falava nada do idioma paterno até descobrir que "saudade" traduzia tudo o que ele vinha tentando dizer sobre fotografias.
"Saudade - Da Poesia Medieval à Fotografia Contemporânea, o Percurso de um Sentimento Ambíguo", de Samuel de Jesus, 41, foi apresentado em 2010 como tese de doutorado na Sorbonne e chega ao país, pela Autêntica, na tradução de Fernando Scheibe.
Espécie de biografia desse enigma português, o ensaio aborda as origens da palavra, entre os séculos 12 e 16, e seus usos literários até chegar aos séculos 20 e 21, nos quais, para o autor, o sentimento ganhou importantes representações iconográficas.
Tem cerca de cem imagens –quase todas belíssimas, mas que infelizmente aparecem miúdas em meio ao texto na edição–, principalmente de fotógrafos franceses, como Pierre Verger, portugueses, como Jorge Guerra, e brasileiros, como German Lorca.
Hoje professor da pós-graduação em artes visuais da Universidade Federal de Goiás, Samuel de Jesus é filho de um sapateiro que, em 1962, escapou da obrigação de servir em campanhas portuguesas na África migrando para a França, onde se casou com uma tipógrafa.
A história familiar o levou a se interessar pela questão da memória –ou do esquecimento– da cultura portuguesa na França. A saudade embutida nessa questão lhe foi apresentada pelo livro de poemas "Só", de António Nobre, que aparece no filme "Porto da Minha Infância" (2001), de Manoel de Oliveira.
"A partir daí comecei a trabalhar para tentar definir o que poderia ser a imagem da saudade e como esse sentimento se configura na fotografia", diz o autor.
As duas primeiras referência históricas encontradas por ele na iconografia datam do mesmo ano, 1899, quando o português António Carneiro pintou o tríptico "A Vida: Esperança, Amor, Saudade", em que o último sentimento do título aparece na imagem de uma mulher vestida de preto, com o olhar vago, ao pé de uma esfinge.
Essa simbologia misteriosa contrasta com o uso mais direto que, ao mesmo tempo, o brasileiro José Ferraz de Almeida Júnior usava na pintura "Saudade", em que uma mulher, cobrindo a boca com um véu, lê uma carta.
Nas fotografias selecionadas para a obra, a saudade não está necessariamente nos títulos –são leituras do autor a partir de imagens, que evocam espera, falta, retorno.
"O ato fotográfico é um gesto que inicia uma saudade, porque suspende um instante para perpetuá-lo. De certa forma, toda fotografia é um monumento à saudade", diz Augustin de Tugny, professor de belas artes da Universidade Federal do Sul da Bahia, que assina a apresentação do estudo.

ORIGENS

Parte da pesquisa de Samuel de Jesus já havia aparecido, no início deste ano, na exposição "A Arte da Lembrança - A Saudade na Fotografia Brasileira", em São Paulo, com curadoria de Diógenes Moura, que trabalhou em parceria com o francês.
Não é um recorte que tenha atraído pesquisadores. Embora estudos sobre a saudade na literatura tenham proliferado no século 20, o olhar pela fotografia é considerado inovador por estudiosos como o português Duarte Nuno Drumond Braga e o italiano Antonio Cardiello.
Braga, hoje pesquisador do pós-doutorado em estudos comparados de literatura na USP, diz que a saudade está intrinsecamente ligada à história de Portugal.
"É uma história de emigração, de afastamento, um país pequeno com uma população que sempre partia, nas navegações, no período colonial, nas crises do século 20", diz. As origens da palavra remetem tanto a "solidão" quanto a "saudação".
Em suas próprias raízes, Samuel de Jesus descobriu na prática o impacto da saudade na fotografia. Ele conta que, anos atrás, ao entrar no sótão empoeirado da casa da avó, deparou com uma pilha de fotos. Numa delas, uma menina de dez anos chamou a sua atenção –era sua mãe.
"Nesse momento, me senti atingido por esse sentimento estranho de uma saudade do futuro, uma espécie de sensação de perda, de uma falta futura que despertou em mim um momento de tristeza e de alegria", conta.

SAUDADE
AUTOR Samuel de Jesus
TRADUÇÃO Fernando Scheibe
EDITORA Autêntica
QUANTO R$ 54 (368 págs.)

Reprodução da Folha de São Paulo

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