Diante dos seguidos disparates ocorridos na Câmara dos Deputados, um leitor da Folha escreveu outro dia que o país está finalmente pagando o preço por um descaso antigo.
A saber, o dos péssimos padrões da educação pública. Não seria outra a razão, sugeriu, para tamanho festival de estupidez e intolerância com relação aos direitos dos homossexuais, à questão da maioridade penal, à da liberação das drogas e a outros pontos correlatos, que por vezes nem chegam a conhecer grande destaque nos foros sociais de discussão.
Foi de deixar os cabelos em pé, por exemplo, uma sessão a que assisti na TV Câmara, na qual um vasto coral de lideranças partidárias defendia a aplicação de penas mais severas para os casos de lesão corporal em que a vítima fosse da polícia.
Traduzindo: imagine que um assaltante em fuga acerta com um tiro, ou atropela, uma pessoa qualquer. Essa pessoa não morre, mas fica condenada a uma cadeira de rodas para o resto da vida. Naturalmente, deve-se punir quem for o responsável por isso.
Deputados de vários partidos defendiam, entretanto, que a pena aumentasse se o atingido pelo tiro ou pelo carro em fuga, em vez de ser você ou eu, fosse um policial.
Ai de quem, naquela sessão, tivesse a coragem de dizer que o crime é igualmente grave, seja quando vitima um cidadão qualquer, seja quando atinge um membro "da corporação". Estaria se arriscando a passar por "amigo dos bandidos" e "inimigo da polícia".
O caso terminou ficando para deliberação posterior, mas a lógica é sempre a mesma. Quem fala em direitos humanos, no Brasil de hoje, não precisa esperar muito para que lhe encostem --metaforicamente-- uma faca no pescoço: "Ah, então você é a favor dos bandidos?".
O radicalismo retórico se multiplica em muitas áreas. Um parlamentar, outro dia, criticou a Marcha da Maconha. Defender a liberação de seu consumo seria o mesmo, em seu raciocínio, do que apoiar a descriminalização da pedofilia.
Do mesmo modo, apoiar o casamento dos homossexuais é querer destruir o casamento heterossexual. E por aí vamos.
Qualquer posição moderada ou sensata se torna complicada demais, e portanto ambígua, para esse tipo de debatedores. O extremista só vê posições extremas à sua frente; a simplificação aumenta sua força de ataque, e nada mais forte, mais agressivo, mais cego, mais estúpido do que um rinoceronte quando desembesta em linha reta.
Será que a onda obscurantista, a violência da direita burra e o crescimento do orgulho reacionário têm sua principal origem na falta de instrução generalizada, na falência do sistema educacional, como aventado no "Painel do Leitor"?
Acho importante lembrar outras causas para o fenômeno. Não é a menor delas, sem dúvida, a brutal desmoralização que a esquerda alegremente infligiu a si mesma, quando se associou, antes mesmo da posse de Lula, à direita religiosa que hoje lhe dá tanto trabalho.
Mas não é por acaso que, atualmente, sejam os evangélicos e a bancada da bala os principais personagens da maré conservadora.
O Brasil colhe os frutos de um processo que, diariamente, e ao longo de décadas, foi fácil de verificar a olho nu. Basta ligar a TV aberta. No horário da tarde, vemos programas que exploram ao máximo o tema da violência urbana. De noite, temos o bombardeio de todo tipo de pregadores evangélicos.
Não poderia ser outro o resultado: deputados pastores e deputados policiais se aliam na Câmara.
Enquanto nós, os iluministas, esquerdistas, frankfurtianos, criticávamos a Rede Globo e suas novelas alienantes, a brutalidade dos Ratinhos e Datenas não dava sequer para começo de conversa.
Enquanto isso, os modernizadores, os privatizantes, os liberais de direita, encantavam-se com a perspectiva de um protestantismo simpático ao capital e à eficiência da mão de obra, em oposição às tendências socializantes do catolicismo.
Construiu-se, na verdade, uma caricatura de Weber, tão distorcida quanto as caricaturas de Marx. A utopia de uma modernidade protestante americana, ao estilo de Benjamin Franklin e da Declaração dos Direitos do Homem, transformou-se num pesadelo de gangsterismo, fisiologia e caça às bruxas.
O obscurantismo atual não é, em resumo, apenas sinal de um vazio, de uma falta de conhecimento. Foi construído, pacientemente, em cada casa brasileira, sob o signo da insegurança, do medo e da raiva, à luz de um tubo de TV.
Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo.
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