DEPOIMENTO
'Escrever é escrever', dizia Doctorow aos alunos
Em aulas de mestrado em criação literária, autor morto anteontem sugeria ler 60 páginas/dia e não falar sobre o trabalho
LUCRECIA ZAPPIESPECIAL PARA A FOLHA
"No Bronx, onde eu cresci, todo mundo vivia quebrado. Havia um grande senso de comunidade."
Desde cedo, o grande escritor americano E.L. Doctorow, que morreu na terça (21), desenvolveu um faro aguçado para a vida que se revolve na sarjeta, e essa consciência coletiva –permeada pela lucidez das vozes individuais e uma clara noção da história em uma cidade que, como Nova York, se autodefine pela sua formação perpétua– se sente em toda a sua obra literária.
E. L. Doctorow foi meu orientador durante o mestrado em criação literária pela Universidade de Nova York, de 2007 a 2009.
Na casa Lilian Vernon, no Greenwich Village, onde o aperto físico acabava se tornando um aconchego obrigatório entre lousas e carteiras em cômodos apequenados, o vencedor dos prêmios PEN/Faulkner e National Book Award mostrou, desde o primeiro dia de classe, a importância da leitura.
Excelente editor que era –trabalhou em textos de Ian Fleming, Norman Mailer e Ayn Rand, entre outros–, debatia com seus estudantes o peso de cada palavra em romances e contos de diversos autores. Entre os seus favoritos estavam Kleist, Kafka, Poe, Woolf e Sebald.
"Três coisas", disse ele sobre ser escritor. "A primeira é ler. Não precisa ser muito, umas 60 páginas por dia já resolvem. A segunda é escrever sobre as próprias obsessões porque delas não se escapa. E, terceiro: nunca, mas nunca fale a respeito do que você está escrevendo. Além de ser uma chatice, falar, fazer pesquisa, pensar a respeito, não é escrever. Escrever é escrever."
Doctorow calava sobre o próprio trabalho e, quando escrevia ficção, só lia textos de não ficção. Era como se não quisesse ser influenciado por outras vozes. Por outro lado, propunha aos alunos paródias de clássicos, tão próximas do original que éramos estimulados a manter os romances abertos durante o exercício.
Dizia que o produzido jamais seria igual ao autor imitado, e que o importante era perceber onde acontecia esse desvio, por menor que fosse, e o que isso revelava.
Do Brasil falava pouco –eu era a única latino-americana do curso–, mas lia com interesse as primeiras histórias que eu tentava articular, ligadas à Bahia. Confessou ter tido um fraco por Carmen Miranda na adolescência– "THE it girl" (algo como "A garota que dita tendências")– e, do nada, perguntou se eu sabia quem era Moacyr Scliar.
Segundo ele, desenvolveram uma amizade desde que o escritor gaúcho, morto em 2011, fez a revisão da tradução para o português, de Roberto Muggiati, do romance "A Marcha" (2005).
Ambos de origem asquenazim, pensei, e ancorados no Novo Mundo em uma mesma geração, sendo que Doctorow era seis anos mais velho.
Scliar explora a identidade judaica em seus escritos, enquanto a busca de Doctorow está na essência do homem americano, em um texto cujo fluxo de consciência traz uma voz coletiva na mistura dos personagens, reais e fictícios –como em "Ragtime" (BestBolso), de 1975, ou "A Marcha" (Record), de 2005.
Sua obra é uma profusão poética e ebulitiva que levanta poeira por onde passa, da qual as referências históricas são indissociáveis.
A última vez que o vi foi no Upper East Side, bairro de Nova York, há pouco mais de um ano, em um domingo à tarde.
Freei no sinal amarelo, praticamente em cima dele, que surgiu por trás de um carro estacionado. O senhor de bengala e boné estendeu o olhar lento por cima dos óculos, em uma curiosidade quase distante. "Poxa, quase te matei!", eu disse.
Saí do carro, rindo, ao reconhecer meu orientador. "É você, é?", perguntou, e me deu um abraço forte no meio da rua. O sorriso maroto era o de quem brinca com o destino.
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