quinta-feira, 9 de julho de 2015

Nua, atriz expurga males da sociedade de consumo

Nua, atriz expurga males da sociedade de consumo

Christiane Tricerri estreia monólogo 'A Merda', do italiano Cristian Ceresoli
Personagem marcada pela feiura e por uma grande necessidade de aceitação despeja na plateia suas cicatrizes
BARBARA GANCIADE SÃO PAULO

"A Merda" de Christiane Tricerri lava a alma. Ela está nua em cena no monólogo, que estreia em São Paulo nesta quinta-feira (9). E vem fervendo. Empoleirada sobre um pedestal, em 60 minutos sua personagem se vale de uma frenética associação de ideias para provocar estímulos nada banais na plateia.
A nossa ignorância, a repulsa, as revelações mais escandalosas, do tipo que provocam o riso histérico para aplacar o desconforto, e as memórias coletiva e individual mais inóspitas que sua personagem furibunda e tão contemporânea faz questão de esbofetear na nossa cara.
Capaz de você sair do teatro de pernas bambas, como quem desce da montanha-russa mais radical do parque da Universal, de Orlando.
Tricerri está ainda mais vigorosa e peituda do que de costume, sua performance consegue criar empatia entre o espectador e a espécie de aberração que está ali feito um gárgula a vociferar sobre os detalhes mais desagradáveis da existência.
Trata-se de uma mulher marcada pela feiura, pela manipulação ensejada pelo trinômio mercado, governo e machismo e pelo desejo de não passar a vida em branco.
A personagem deseja ser... apresentadora de TV, claro. Na sua cabeça, vai montando o diálogo que terá durante o teste com a equipe da emissora que a chamar.
São três atos tragicômicos. Nessa gigantesca colcha de retalhos de cicatrizes, nós somos capazes de perceber no desespero da personagem a nossa própria inquietação.
A ação se passa na Itália, as referências são inúmeras, Tricerri canta estrofes da malfadada letra do hino da Itália da unificação, de autoria de Goffredo Mameli, que convoca os italianos a recuperarem o espírito vitorioso dos antigos romanos, conclamando que vistam o elmo de Cipião, o centurião que derrotou Aníbal, o Grande, na Antiguidade.
Foram 600 anos de derrotas, ocupações e sangue derramado depois de Cipião.
A ação se dá na contemporaneidade. O que significa que a personagem, mesmo jovem, deva ter sentido os respingos dos anos de chumbo das Brigadas Vermelhas, na década de 70, e depois ainda testemunhado os escândalos da Operação Mãos Limpas, nos anos 90, o banqueiro do Vaticano enforcado numa ponte londrina, o escândalo da Loja Maçônica P 2 em que 972 empresários e políticos foram indiciados pelo poder público, sendo um deles um tal de Silvio Berlusconi, que depois acabou se tornando primeiro-ministro da Itália (1994-2011).

LÁ COMO CÁ

Haja merda, não é mesmo?
E é aí que está a genialidade do texto do piemontês Cristian Ceresoli e a sacada da atriz, produtora e diretora Christiane Tricerri em trazer o monólogo "A Merda" para o palco quase sem adaptação.
A merda acaba sendo sempre a mesma. Compare: o futebol e a TV são os pilares ao redor dos quais giram os rituais da família, a glória do hino de Mameli permanece tão congelada no futuro quanto o nosso "gigante adormecido em berço esplêndido".
E, tanto lá como cá, há uma legião de jovens pirando na solidão dos seus quartinhos miseráveis, mas que vomitariam tudo o que a personagem de Tricerri joga no colo da plateia. Porque sou feia, pratiquei felação no fanho aleijado lá da escola; porque tenho coxas deformadas, deixei que abusassem de mim, e assim por diante.
A deglutição da sua própria carne, a digestão transformadora e a evacuação redentora de material que lhe foi tão inútil e incômodo, que esteve ali presente o tempo todo quase como um testemunho perverso do seu fracasso, do fracasso da Itália e, por fim, da humanidade, é a realização de uma fantasia.
É a eliminação do obstáculo material que está ali a nos impedir de realizar o sonho. "Cagando pelo cu, pelo cu" (a frase é repetida com sabor infantil para cutucar o fígado da plateia) é um ato libertador.
Estamos falando da verdadeira revolução pretendida pelo cineasta Pier Paolo Pasolini --que criticava o "genocídio cultural" da sociedade de consumo moderna. Aquela que talvez só veja encantamento na aceitação de que tudo é merda.

A MERDA
QUANDO dia 9/7, às 18h; qui. a sáb., às 20h30; até 15/8
ONDE Sesc Pinheiros, r. Paes Leme, 195, tel. (11) 3095-9400
QUANTO R$ 7,50 a R$ 25
CLASSIFICAÇÃO 18 anos

Reprodução da Folha de São Paulo

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