Nua, atriz expurga males da sociedade de consumo
Christiane Tricerri estreia monólogo 'A Merda', do italiano Cristian Ceresoli
Personagem marcada pela feiura e por uma grande necessidade de aceitação despeja na plateia suas cicatrizes
"A Merda" de Christiane Tricerri lava a alma. Ela está nua em cena no monólogo, que estreia em São Paulo nesta quinta-feira (9). E vem fervendo. Empoleirada sobre um pedestal, em 60 minutos sua personagem se vale de uma frenética associação de ideias para provocar estímulos nada banais na plateia.
A nossa ignorância, a repulsa, as revelações mais escandalosas, do tipo que provocam o riso histérico para aplacar o desconforto, e as memórias coletiva e individual mais inóspitas que sua personagem furibunda e tão contemporânea faz questão de esbofetear na nossa cara.
Capaz de você sair do teatro de pernas bambas, como quem desce da montanha-russa mais radical do parque da Universal, de Orlando.
Tricerri está ainda mais vigorosa e peituda do que de costume, sua performance consegue criar empatia entre o espectador e a espécie de aberração que está ali feito um gárgula a vociferar sobre os detalhes mais desagradáveis da existência.
Trata-se de uma mulher marcada pela feiura, pela manipulação ensejada pelo trinômio mercado, governo e machismo e pelo desejo de não passar a vida em branco.
A personagem deseja ser... apresentadora de TV, claro. Na sua cabeça, vai montando o diálogo que terá durante o teste com a equipe da emissora que a chamar.
São três atos tragicômicos. Nessa gigantesca colcha de retalhos de cicatrizes, nós somos capazes de perceber no desespero da personagem a nossa própria inquietação.
A ação se passa na Itália, as referências são inúmeras, Tricerri canta estrofes da malfadada letra do hino da Itália da unificação, de autoria de Goffredo Mameli, que convoca os italianos a recuperarem o espírito vitorioso dos antigos romanos, conclamando que vistam o elmo de Cipião, o centurião que derrotou Aníbal, o Grande, na Antiguidade.
Foram 600 anos de derrotas, ocupações e sangue derramado depois de Cipião.
A ação se dá na contemporaneidade. O que significa que a personagem, mesmo jovem, deva ter sentido os respingos dos anos de chumbo das Brigadas Vermelhas, na década de 70, e depois ainda testemunhado os escândalos da Operação Mãos Limpas, nos anos 90, o banqueiro do Vaticano enforcado numa ponte londrina, o escândalo da Loja Maçônica P 2 em que 972 empresários e políticos foram indiciados pelo poder público, sendo um deles um tal de Silvio Berlusconi, que depois acabou se tornando primeiro-ministro da Itália (1994-2011).
LÁ COMO CÁ
Haja merda, não é mesmo?
E é aí que está a genialidade do texto do piemontês Cristian Ceresoli e a sacada da atriz, produtora e diretora Christiane Tricerri em trazer o monólogo "A Merda" para o palco quase sem adaptação.
A merda acaba sendo sempre a mesma. Compare: o futebol e a TV são os pilares ao redor dos quais giram os rituais da família, a glória do hino de Mameli permanece tão congelada no futuro quanto o nosso "gigante adormecido em berço esplêndido".
E, tanto lá como cá, há uma legião de jovens pirando na solidão dos seus quartinhos miseráveis, mas que vomitariam tudo o que a personagem de Tricerri joga no colo da plateia. Porque sou feia, pratiquei felação no fanho aleijado lá da escola; porque tenho coxas deformadas, deixei que abusassem de mim, e assim por diante.
A deglutição da sua própria carne, a digestão transformadora e a evacuação redentora de material que lhe foi tão inútil e incômodo, que esteve ali presente o tempo todo quase como um testemunho perverso do seu fracasso, do fracasso da Itália e, por fim, da humanidade, é a realização de uma fantasia.
É a eliminação do obstáculo material que está ali a nos impedir de realizar o sonho. "Cagando pelo cu, pelo cu" (a frase é repetida com sabor infantil para cutucar o fígado da plateia) é um ato libertador.
Estamos falando da verdadeira revolução pretendida pelo cineasta Pier Paolo Pasolini --que criticava o "genocídio cultural" da sociedade de consumo moderna. Aquela que talvez só veja encantamento na aceitação de que tudo é merda.
A MERDA
QUANDO dia 9/7, às 18h; qui. a sáb., às 20h30; até 15/8
ONDE Sesc Pinheiros, r. Paes Leme, 195, tel. (11) 3095-9400
QUANTO R$ 7,50 a R$ 25
CLASSIFICAÇÃO 18 anos
ONDE Sesc Pinheiros, r. Paes Leme, 195, tel. (11) 3095-9400
QUANTO R$ 7,50 a R$ 25
CLASSIFICAÇÃO 18 anos
Reprodução da Folha de São Paulo.
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