"Estão me devendo comida, buceta, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes, estão me devendo."
É o que diz o personagem-título de "O Cobrador" (1979), um dos melhores e mais violentos contos de Rubem Fonseca. Os 90 anos do escritor, completados na segunda (11), acendem o desejo de reler cacetadas como essa e como "Feliz Ano Novo" (1975). Em ambas, sem floreios ou academicismos, o assunto é a incomensurável dívida que o país tem com a maior parte da população.
A raiva dos ferrados protagonistas se volta contra os que possuem Mercedes, mansões, champanhes, saúde, tempo livre. É mesmo difícil haver empatia entre mundos tão diferentes --e, no entanto, até há.
Veja-se, em sentido contrário, o ódio que os patriotas de Miami ou de certas áreas de São Paulo e Rio despejam contra quem tem Bolsa Família, habitação social (ruim), direito às cotas e outras pequenas compensações por tamanha desigualdade.
No Brasil, desde os primórdios, o Estado é nossa graça e nossa desgraça. Malfadamos a "máquina pública inchada", mas as grandes decisões no planalto e a nossa vida na planície são permeadas de "indicações" --cargos, vantagens, favores.
Muitos queremos que a polícia proteja a nossa casa, mas que invada a dos que vivem em favelas. Clamamos por boas universidades públicas para nossos filhos, que se preparam em colégios particulares; já quem tem menos recursos pena em escolas públicas para, quando muito, cursar faculdades privadas.
É bom pagar menos impostos e ter carro barato; ou não pagá-los, enviando dinheiro para o exterior. Difícil aceitar é que esses impostos sirvam para alimentar outras pessoas. O Estado deve nos servir, pensam sempre os abastados, tão bem retratados por Machado de Assis (com sarcasmo e amargor) e Rubem Fonseca (com violência).
Texto de Luiz Fernando Vianna, na Folha de São Paulo.
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