quinta-feira, 7 de maio de 2015

A crise de meia-idade

Já passei da meia-idade. Segundo várias pesquisas, isso significa que, agora, ficando idoso, eu serei bem mais feliz do que há 20 anos, por exemplo.
Essa felicidade deve durar e subir até que cheguem as verdadeiras limitações impostas pelo envelhecimento e as eventuais doenças invalidantes. A meia-idade parece ser uma fossa pela qual todos passamos: pior que a adolescência e os anos do jovem adulto, e pior do que a terceira idade.
Essa fossa inevitável consistiria numa decepção com o que a gente conseguiu na vida até então: uma tristeza ao constatar que o horizonte final se aproxima e que, portanto, começos radicalmente novos seriam difíceis e tardios.
Isso, acompanhado por uma tendência a fazer besteiras para provar que, ao contrário, a vida acaba de começar --desde comprar um conversível importado até se casar com alguém de 19 anos.
Não me parece que eu tenha vivido uma crise de meia-idade típica. Mas alguns amigos brasileiros me lembram que, de fato, foi bem na época da tal crise que eu deixei Paris e me instalei no Brasil. Bom, não sei se foi uma besteira da meia-idade; de qualquer forma, não me arrependo.
Enfim, recebo pedidos de atendimento de homens e mulheres que sofrem da dita crise da meia-idade. Alguns supõem que a crise tenha alguma causa química "natural".
Afinal, eles estão, nesta altura da vida, onde esperavam estar; sim, claro, há dificuldades, sempre há, mas nada que justifique seu mal-estar. O que será? Uma espécie de pré-menopausa ou pré-andropausa? Uma alteração hormonal que chega junto com os 40?
Recentemente, uma pesquisa de C. Graham e M. Nikolova (da Brookings Institution) confirmou a conhecida "curva em U" da felicidade: ao longo dos anos de uma vida, a curva do bem-estar (corrigida pelas variáveis óbvias --emprego, situação financeira, saúde etc.) é uma linha que despenca entre os 35 e 55 e depois sobe até o fim da vida.
Num artigo recente sobre a meia-idade, na revista "The Atlantic" de dezembro de 2014, Jonathan Rauch cita uma pesquisa de primatólogos segundo a qual chimpanzés e orangotangos, ao longo da vida, passariam por curva análoga à humana.
Tenho uma confiança limitada nos questionários que permitem essa pesquisa e que são preenchidos por cuidadores de zoológico, veterinários etc., os quais, inevitavelmente, tendem a projetar seus sentimentos nos primatas com os quais lidam.
A pesquisa dos primatólogos me parece sobretudo expressar nossa vontade de confirmar a hipótese de uma explicação biológica pela crise da meia-idade.
No extremo oposto, Rauch nota que a crise da meia-idade é uma ideia que ganhou força nos anos 1950 e 60, bem quando inventamos a adolescência.
Nos mesmos anos, nossa cultura passou a cultivar duas imagens contrastantes e complementares: a de uma adolescência inquieta e intolerante da moratória imposta pela necessidade de se preparar para o futuro, e a de uma meia-idade em que o futuro chegou e, mesmo que ele seja parecido com o sonho, surge a pergunta: era isso mesmo? Só isso?
Mas voltemos à queixa de quem sofre da crise da meia-idade e pede alívio, químico ou psicoterapêutico.
Para aceitar uma derrota ou uma perda na nossa história, podemos pedir ajuda a um psicoterapeuta, ou podemos pedir um remédio que nos permita sofrer menos.
Também podemos recorrer à mesma ajuda para lidar com sintomas ou com transtornos de personalidade que nos imobilizam e tornam nossa vida impossível.
Mas os 40 anos não são uma "doença". E se deprimir por ter chegado aos 40 não é a mesma coisa que ficar triste porque a gente perdeu alguém, separou-se ou foi demitido.
Ou seja, a meia-idade não é nem um acidente nem um transtorno. Se ela acarreta uma dor específica, é uma dor que vai junto com a própria vida humana, uma dor existencial.
As dores existenciais também podem ser atenuadas --embora o caminho para se desfazer de algumas delas seja árduo (para se esquecer mesmo da finitude da vida, por exemplo, só com propofol ou crack).
No caso da meia-idade, certamente é possível aliviar a decepção de quem aprecia as aspirações passadas, decisões, renúncias e não sabe dizer se viveu o que queria.
Mas cuidado: aliviar não implica considerar a meia-idade como se fosse um diagnóstico possível. Em outras palavras, é bom não confundir as dores da existência com transtornos que precisariam ser tratados.


Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo

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