quarta-feira, 6 de maio de 2015

Crianças tristes

Vivian Maier (1926-2009) trabalhou a maior parte da vida como babá. Morando em Nova York e depois em Chicago, seu hobby era sair pelas ruas tirando fotos. Ao longo da vida, acumulou cerca de 150 mil negativos, sem que ninguém tomasse conhecimento do que ela fazia.
Há coisa de poucos anos, o corretor de imóveis John Maloof comprou por acaso o maravilhoso acervo de fotografias urbanas deixado por ela –do qual uma amostra está em exibição no Museu da Imagem e do Som, até 14 de junho.
Também saiu, pela editora Autêntica, a reimpressão de "Vivian Maier –Uma Fotógrafa de Rua". O livro reúne fotos antológicas da autora –e, no sépia escuro de sua impressão, parece intensificar, para mim, o que há de inexplicavelmente triste naquelas imagens de sessenta anos atrás.
Basta ver as crianças de Vivian Maier. Nas fotos de Henri Cartier-Bresson, por exemplo, elas parecem divertir-se imensamente. Mesmo entre muros esburacados por tiros, numa Sevilha em plena guerra civil, a infância corre solta.
Aqueles ares de petulância, de sonho e de alegria, tão comuns em Cartier-Bresson, desaparecem ante os olhos da babá-fotógrafa.
É certo que, na primeira foto do livro, um rapazinho de braços cruzados e topete cheio de brilhantina encara a lente da máquina com autoconfiança digna de um pequeno Don Juan.
Mas a tristeza prevalece. Garotos bem pequenos surgem com ar de adultos. Calça comprida, mão no bolso, cabelo recém-cortado, acompanham, de longe, não sei que séria atividade das meninas.
Não é que esteja tão frio naquele parque público, mas parece impensável que essas crianças possam tirar seus casaquinhos e sapatos.
Nem mesmo na fila de um espetáculo infantil há expectativa ou animação. Meninos e meninas esperam, longamente, a hora de entrar na maturidade.
Duas amiguinhas, com cinco anos talvez, trocam mexericos e confidências; já poderiam ser colegas num escritório, ou garçonetes em horário de folga.
No banco traseiro de um carrão impecável, o casal de irmãozinhos não se dispõe a muita conversa fiada. O menor coça a cabeça, como quem hesita antes de pedir indicação de um endereço ao homem de posto de gasolina.
A menina, com o queixo apoiado nas mãos e um cotovelo para fora da janela, parece perfurar com os olhos o diafragma da máquina.
Uma das coisas mais bonitas nas fotos de Vivian Maier, aliás, é o contraponto entre as personagens que não se percebem fotografadas e aquelas que desafiam duramente a aproximação da câmera.
Há os ausentes e os presentes; os distraídos e os armados; os despertos, os que dormem, e os que sabem que vão morrer.
Um cavalo morto ficou encostado na guia, numa rua de Nova York; uma poltrona foi incendiada e ainda fumega, ao lado de uma lata de lixo; o olho cego de um mendigo se perde de seu rosto.
Provavelmente a realidade americana de 1950 não era bem essa, mas tudo parece muito sujo –os muros, as lanchonetes, os lenços no cabelo das velhas, as escadas, os quintais.
Não parece haver sequer saúde em algumas das crianças de Vivian Maier: joelhos saltados na esqualidez, a pele imunda de uma loirinha a ponto de explodir no choro.
Vendo isso, devo dizer que não sou daqueles que mais se impressionam com os problemas que os especialistas detectam na infância de hoje em dia.
Neste domingo, a Folha publicou reportagem sobre os pequenos talentos do funk. Ainda impúberes, cantam músicas repletas de obscenidades. É chocante, principalmente pelo que significa de possível exploração econômica das crianças.
Do ponto de vista delas, entretanto, o mais provável é que estejam antes brincando de ser adultas do que vivendo precocemente sua sexualidade.
No fundo, temos um medo enorme da curiosidade que as crianças possam ter pelo sexo. O tabu é tão forte que, se um menino diz ter "namorada" na escolinha do fundamental, pais e psicólogos entram em pânico. Não estará apenas brincando? E testando nossa reação?
Não nos espantamos quando um menino, brincando de polícia e ladrão, "mata" o outro a tiros.
As crianças de Vivian Maier nem disso pareciam brincar. Talvez estivessem apenas vivendo uma seriedade de faz de conta, inspirados em pais taciturnos e mães sacrificadas.
Seja como for, os adultos de 1950 não eram tão assanhados como os de hoje. Natural que, do namoro à obscenidade, as crianças contemporâneas nos imitem como podem.


Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

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