Na manhã de 18 de maio de 1973, uma sexta-feira, Araceli Cabrera
Crespo foi à escola como sempre fazia. Feliz: levava na mochila um
bilhete da mãe à professora, pedindo que saísse mais cedo da aula. Sua
tarefa era apenas entregar um envelope lacrado num edifício de Vitória.
Faltava pouco mais de um mês para o seu aniversário de nove anos.
Criança simples, sorridente, ela adorava sua boneca de cabelinhos claros
repartidos ao meio, imitação barata da Barbie que não podia ter. Ela e
Carlinhos formavam o casal de filhos do eletricista Gabriel e da
boliviana Lola, moradores de uma casa modesta em Serra (ES).
O Brasil dos generais, ao som dos Secos&Molhados e dos motores de
Fittipaldi, comemorava o “milagre econômico”. O governo Médici agia com
mão pesada contra os opositores, mas não exatamente contra bandidos. O
tráfico de drogas entrava no país com todo seu aparato: crime
organizado, gente importante, corrupção. Araceli nem sonhava com isto.
Ela sonhava com brinquedos. Porém naquela manhã, aos oito anos, todos os
seus sonhos foram interrompidos. Ela não sabia, mas o envelope da mãe
tinha drogas. Ao chegar no prédio, um grupo de rapazes de famílias ricas
e importantes da capital, conhecidos por suas orgias regadas a cocaína e
LSD, não deixou a menina ir embora. E Araceli foi espancada, dopada,
torturada, estuprada e morta. Seu corpo tinha marcas de dentadas nos
seios e vagina. A perícia constatou que ela foi asfixiada. Queimada.
Quebraram seu queixo com socos. Seu corpo foi desfigurado, ficou dois
dias no freezer do bar de um viciado e, depois, foi jogado num matagal
com ácido para dificultar sua identificação.
A crueldade não parou no crime: a corrupção e impunidade, a partir
daí, impressionaram. A mãe tinha irmãos traficantes em Santa Cruz de La
Sierra e fugiu, deixando marido e filho. Dez possíveis testemunhas do
caso foram mortas, inclusive um policial. O corpo da menina ficou quase
três anos numa gaveta do IML. E jamais alguém foi punido por esta
barbárie. O crime prescreveu. Hoje, Araceli dá nome à rua onde morou. E
em 2000, foi criado o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração
Sexual Infanto-juvenil, com o 18 de maio em sua homenagem. Basta? Não.
Milhares de meninos e meninas são abusados por dia no Brasil. Milhares
de pais e mães colocam seus filhos em risco por desleixo ou falta de
amor. Aracelis de todas as idades são violentadas inclusive dentro de
suas próprias casas. Vítimas que sofrem caladas, sob ameaças e
descréditos, terrores dos quais dificilmente irão se recuperar. Amor
exige atenção. Então abra o olho. Cuide. Ame. Proteja. E que seja agora,
antes, para não chorar a dor do arrependimento tarde demais.
Reprodução do Blog de Oscar Bessi, no Correio do Povo.
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